por Fabiana Agra*
No mês em que Picuí completa 111 anos de emancipação, a sua Câmara de
Vereadores vota e aprova uma lei que, no seu cerne, amordaça os professores do
município. A ideia para tal lei vem de iniciativas como as da ONG “Escola Sem
Partido”, e de um projeto de lei semelhante, apresentado no Rio por, nada mais
nada menos, do que Flávio Bolsonaro – filho do outro Bolsonaro.
A discussão é sobre um suposto processo de doutrinação protagonizado
pelas escolas – em especial por docentes da área de humanas – cujo objetivo
seria alimentar uma “ideologia comunista” entre estudantes do ensino
fundamental e médio. A ONG em questão, tem por objetivo maior aglutinar
denúncias e promover ações, com o pretexto de limpar a escola da
“ideologização”.
Aí eu pergunto: qual é a ideologia que existe por trás disso?
É obvio que eu também não concordo que educadores ensinem aos seus alunos
optarem por determinadas ideologias ou terem certas preferências partidárias. E
não acredito que tal seja a prática dos educadores picuienses. Acontece que a
proposta da lei ignora que todo posicionamento e conteúdo veiculados
no discurso, seja de quem quer que seja, é carregado de “ideologia”, que nada
mais é do que o “conjunto de ideias e conceitos que utilizamos para lidar com a
realidade e uns com os outros”. Não há, portanto, conversa sem ideologia,
bate-papo sem ideologia, ministrar aula sem ideologia.
Até para conhecer os dois lados da moeda, fui dar um passeio no site da
ONG “Escola sem Partido”: vi quem são os grupos apoiadores, seus fundadores; vi
os links compartilhados pela página... Então, basta uma olhadela por lá para
saber quais ideologias o site defende. Algum tempo atrás, o mesmo site
tentou emparedar Cleonilde Tibiriçá, professora da Faculdade de Tecnologia de
São Paulo, por considerar que a mesma utilizaria material de “teor ideológico”.
A defesa da professora é um libelo contra tudo o que se esconde por trás do
movimento e deve ser lido pelos nossos educadores:
“(...) Como professora
contratada pela FATEC por meio de concurso público, igualmente me é assegurada
a autonomia para, dentro de minha área de especialidade, definir o plano de
ensino no formato em que julgar que deva sê-lo. Isso seria o bastante para
apenas ignorar sua ameaça (e é disso que se trata, já que, salvo melhor juízo,
não há qualquer embasamento científico que confira ‘foros’ de ‘parecer’ àquilo
que, a despeito de ser livre exercício de manifestação de pensamento, é apenas
tentativa de calar o que vai de encontro àquilo que o “partido” – seja lá qual
for – da “escola sem partido” crê deva ser posto em debate); todavia, ameaças
desse tipo, por mais inócuas que pareçam, não podem ser ignoradas. O sr., seus
chefes e seus seguidores são adultos que devem assumir a responsabilidade pelas
ações persecutórias que desencadeiam e suas consequências. E é o que acontecerá
– o sr., seus chefes e seus seguidores responderão judicialmente caso tentem
vincular meu nome à sua campanha de bullying ideológico (...)”
O que se temos aqui é aquele velho e conhecido debate sobre ser ou não
possível educar sem que haja uma concepção política por trás, discussão similar
à possibilidade de haver imparcialidade nos meios de comunicação. Discussões
essas que não levam a nada, a não ser desviar a nossa atenção para as reais
demandas da sociedade. Ora, retirar da educação o seu caráter político é
extrair todo o seu sentido. Tibiriçá, em sua brilhante defesa, lembra que:
“O problema está em desafiar este ideário tradicionalista e afinar-se…
com a Constituição! Sim, pois invocar a liberdade de crença, ou mesmo a LDB,
para defender uma limitação seletiva e arbitrária no discurso de educadoras e
educadores é, por assim dizer, um tiro no pé. E isso porque, compreendido que
toda forma de educação envolve escolhas políticas e discursivas e, portanto, é
ideológica, bem como que a eliminação de formas de discriminação e preconceito
são diretrizes legais nacionais e internacionais que devem orientar o agir de
todos os atores sociais, aí incluídos educadoras e educadores, percebe-se que,
mais do que um direito, é um dever da escola combater todas as formas de
opressão existentes e, fundamentalmente, questionar a própria estrutura social
desigual na qual estamos inseridos”.
Escolhas políticas são inerentes à educação, sendo ela própria uma
iniciativa política: escolarizar a população. Aprender que o Brasil foi
“descoberto”, que D. Pedro I é o “defensor perpétuo do Brasil”, que Duque de
Caxias é herói nacional, são conteúdos totalmente politizados, no sentido de
tentarem minimizar a nossa condição de país colonizado e dominado culturalmente
ao longo dos séculos.
Há política em tudo isso. Mas quando a patrulha da “escola sem ideologia”
vem à tona, é para defender uma despolitização bastante parcial. Falar de
“Descobrimento”, pode. Mencionar reforma agrária, não pode. Ensinar nomes de
rios e capitais, pode. Discutir a questão racial, não pode. Passar os valores
da “família”, pode. Debater casamento homoafetivo, não pode.
O
pior de tudo é que o cinismo desses grupos não esconde que o “sem partido” é
partidário, sim, seus asseclas são seguidores de uma ideologia liberal
conservadora, alheia à agenda dos direitos humanos, avessa aos movimentos
sociais, incapaz de sustentar sequer a democracia que o Brasil conseguiu a
duras penas.
Adriano Senkevics, pesquisador do INEP, lembra, com propriedade: “não me
assusta que este cerco armado contra qualquer formação crítica – repito, dentro
dos marcos da nossa democracia – seja a maior opositora à incorporação das
disciplinas de sociologia e filosofia nos currículos. É óbvio. O que são essas
disciplinas senão um campo para o sujeito repensar seu papel na sociedade,
repensando-a por inteiro? Dá no que dá: jovens saem da escola sem ter as
mínimas noções do sistema político, da sociedade, do modo de produção econômico
etc. Saem, portanto, despolitizados”.
A lei que foi votada e aprovada em Picuí, na verdade, insinua que a
educação em nosso município é uma doutrinação de esquerda – o que passa longe
da verdade; se assim fosse não teríamos notícias que relatam violência,
racismo, homofobia, classismo, machismo nas escolas de todo o Brasil. Assim,
“não se trata de ‘despolitizar’ a escola, mas de definir coletivamente com a
sociedade quais são os marcos políticos que vão nortear a educação, das
políticas públicas aos currículos”. E isso, meus amigos, não é feito
amordaçando os professores de lugar nenhum. Isso é feito através do debate!
Eu arremato com as palavras de Senkevics:
“O
silêncio que se pretende impor é uma forma brutal de calar as desigualdades,
injustiças e opressões que estão às vistas de toda a sociedade e que, elas
mesmas, entram com força na própria escola: a violência, a discriminação, a
marginalização, a repressão policial. Não sou eu que estou falando: essa é a realidade
que uma boa parcela dos/as estudantes pobres da periferia vivem, os quais
compõem significativamente a massa de crianças e jovens das escolas públicas”.
Finalmente, professores e educadores de Picuí: é chegada a hora de
reagir, pois caso vocês se deixem amordaçar agora, as novas gerações picuienses
serão cérebros desprovidos de idéias e ideais – coisa bem comum nos tempos da
ditadura...
Contem comigo.
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