sábado, 7 de março de 2015

Carta Aberta aos Educadores Picuienses


por Fabiana Agra*


     No mês em que Picuí completa 111 anos de emancipação, a sua Câmara de Vereadores vota e aprova uma lei que, no seu cerne, amordaça os professores do município. A ideia para tal lei vem de iniciativas como as da ONG “Escola Sem Partido”, e de um projeto de lei semelhante, apresentado no Rio por, nada mais nada menos, do que Flávio Bolsonaro – filho do outro Bolsonaro.

     A discussão é sobre um suposto processo de doutrinação protagonizado pelas escolas – em especial por docentes da área de humanas – cujo objetivo seria alimentar uma “ideologia comunista” entre estudantes do ensino fundamental e médio. A ONG em questão, tem por objetivo maior aglutinar denúncias e promover ações, com o pretexto de limpar a escola da “ideologização”.

     Aí eu pergunto: qual é a ideologia que existe por trás disso?

     É obvio que eu também não concordo que educadores ensinem aos seus alunos optarem por determinadas ideologias ou terem certas preferências partidárias. E não acredito que tal seja a prática dos educadores picuienses. Acontece que a proposta da lei ignora que todo posicionamento e conteúdo veiculados no discurso, seja de quem quer que seja, é carregado de “ideologia”, que nada mais é do que o “conjunto de ideias e conceitos que utilizamos para lidar com a realidade e uns com os outros”. Não há, portanto, conversa sem ideologia, bate-papo sem ideologia, ministrar aula sem ideologia.

     Até para conhecer os dois lados da moeda, fui dar um passeio no site da ONG “Escola sem Partido”: vi quem são os grupos apoiadores, seus fundadores; vi os links compartilhados pela página... Então, basta uma olhadela por lá para saber quais  ideologias o site defende. Algum tempo atrás, o mesmo site tentou emparedar Cleonilde Tibiriçá, professora da Faculdade de Tecnologia de São Paulo, por considerar que a mesma utilizaria material de “teor ideológico”. A defesa da professora é um libelo contra tudo o que se esconde por trás do movimento e deve ser lido pelos nossos educadores:

      “(...) Como professora contratada pela FATEC por meio de concurso público, igualmente me é assegurada a autonomia para, dentro de minha área de especialidade, definir o plano de ensino no formato em que julgar que deva sê-lo. Isso seria o bastante para apenas ignorar sua ameaça (e é disso que se trata, já que, salvo melhor juízo, não há qualquer embasamento científico que confira ‘foros’ de ‘parecer’ àquilo que, a despeito de ser livre exercício de manifestação de pensamento, é apenas tentativa de calar o que vai de encontro àquilo que o “partido” – seja lá qual for – da “escola sem partido” crê deva ser posto em debate); todavia, ameaças desse tipo, por mais inócuas que pareçam, não podem ser ignoradas. O sr., seus chefes e seus seguidores são adultos que devem assumir a responsabilidade pelas ações persecutórias que desencadeiam e suas consequências. E é o que acontecerá – o sr., seus chefes e seus seguidores responderão judicialmente caso tentem vincular meu nome à sua campanha de bullying ideológico (...)”

     O que se temos aqui é aquele velho e conhecido debate sobre ser ou não possível educar sem que haja uma concepção política por trás, discussão similar à possibilidade de haver imparcialidade nos meios de comunicação. Discussões essas que não levam a nada, a não ser desviar a nossa atenção para as reais demandas da sociedade. Ora, retirar da educação o seu caráter político é extrair todo o seu sentido. Tibiriçá, em sua brilhante defesa, lembra que:

     “O problema está em desafiar este ideário tradicionalista e afinar-se… com a Constituição! Sim, pois invocar a liberdade de crença, ou mesmo a LDB, para defender uma limitação seletiva e arbitrária no discurso de educadoras e educadores é, por assim dizer, um tiro no pé. E isso porque, compreendido que toda forma de educação envolve escolhas políticas e discursivas e, portanto, é ideológica, bem como que a eliminação de formas de discriminação e preconceito são diretrizes legais nacionais e internacionais que devem orientar o agir de todos os atores sociais, aí incluídos educadoras e educadores, percebe-se que, mais do que um direito, é um dever da escola combater todas as formas de opressão existentes e, fundamentalmente, questionar a própria estrutura social desigual na qual estamos inseridos”.

   Escolhas políticas são inerentes à educação, sendo ela própria uma iniciativa política: escolarizar a população. Aprender que o Brasil foi “descoberto”, que D. Pedro I é o “defensor perpétuo do Brasil”, que Duque de Caxias é herói nacional, são conteúdos totalmente politizados, no sentido de tentarem minimizar a nossa condição de país colonizado e dominado culturalmente ao longo dos séculos.

     Há política em tudo isso. Mas quando a patrulha da “escola sem ideologia” vem à tona, é para defender uma despolitização bastante parcial. Falar de “Descobrimento”, pode. Mencionar reforma agrária, não pode. Ensinar nomes de rios e capitais, pode. Discutir a questão racial, não pode. Passar os valores da “família”, pode. Debater casamento homoafetivo, não pode.

    O pior de tudo é que o cinismo desses grupos não esconde que o “sem partido” é partidário, sim, seus asseclas são seguidores de uma ideologia liberal conservadora, alheia à agenda dos direitos humanos, avessa aos movimentos sociais, incapaz de sustentar sequer a democracia que o Brasil conseguiu a duras penas.

     Adriano Senkevics, pesquisador do INEP, lembra, com propriedade: “não me assusta que este cerco armado contra qualquer formação crítica – repito, dentro dos marcos da nossa democracia – seja a maior opositora à incorporação das disciplinas de sociologia e filosofia nos currículos. É óbvio. O que são essas disciplinas senão um campo para o sujeito repensar seu papel na sociedade, repensando-a por inteiro? Dá no que dá: jovens saem da escola sem ter as mínimas noções do sistema político, da sociedade, do modo de produção econômico etc. Saem, portanto, despolitizados”.

     A lei que foi votada e aprovada em Picuí, na verdade, insinua que a educação em nosso município é uma doutrinação de esquerda – o que passa longe da verdade; se assim fosse não teríamos notícias que relatam violência, racismo, homofobia, classismo, machismo nas escolas de todo o Brasil. Assim, “não se trata de ‘despolitizar’ a escola, mas de definir coletivamente com a sociedade quais são os marcos políticos que vão nortear a educação, das políticas públicas aos currículos”. E isso, meus amigos, não é feito amordaçando os professores de lugar nenhum. Isso é feito através do debate!

     Eu arremato com as palavras de Senkevics:
  “O silêncio que se pretende impor é uma forma brutal de calar as desigualdades, injustiças e opressões que estão às vistas de toda a sociedade e que, elas mesmas, entram com força na própria escola: a violência, a discriminação, a marginalização, a repressão policial. Não sou eu que estou falando: essa é a realidade que uma boa parcela dos/as estudantes pobres da periferia vivem, os quais compõem significativamente a massa de crianças e jovens das escolas públicas”.

     Finalmente, professores e educadores de Picuí: é chegada a hora de reagir, pois caso vocês se deixem amordaçar agora, as novas gerações picuienses serão cérebros desprovidos de idéias e ideais – coisa bem comum nos tempos da ditadura...

Contem comigo.




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