segunda-feira, 31 de agosto de 2015

AS SECAS DO SERIDÓ NOS SÉCULOS XVIII E XIX


A chamada “Grande Seca” que vigorou por três anos, de 1791 a 1793, foi reconhecidamente a maior e mais dramática do século XVIII. No primeiro ano, prenunciando-se a estiagem após os meses em que se esperavam chuva, alguns criadores conduziram seus rebanhos para o agreste e para os sertões mais úmidos da Capitania da Paraíba. O gado sedento e desnutrido que permaneceu nos pastos seridoenses, já em setembro, foi quase totalmente dizimado. Famílias inteiras tentavam escapar à seca, buscando o agreste, muitos morrendo de fome pelas estradas. Outras ficaram e recorreram ao que a natureza oferecia de seus produtos mais resistentes e aos restolhos animais. O limiar entre a vida e a morte, neste caso, era traçado pelas contingências da resistência digestiva. O chique-chique, cacto de eriçados e longos espinhos, guardava em seu interior o miolo que poderia ser, no limite do desespero humano, ingerido. Mas somente estômagos obstinados poderiam suportar. Muitos alimentados com aquela iguaria da escassez, se escapavam à fome, sucumbiam à intoxicação. É possível que todo tipo de proteína animal tenha sido posta na pauta dietética: lagartos, aves, roedores e outros pequenos animais. No entanto, rareada a caça nestes períodos, o sertanejo desnutrido não tinha forças suficientes para sua perseguição contumaz, recorrendo in extremis às mais bizarras alternativas. Nos caminhos incertos por onde passava, tudo poderia se transformar em alimento. Couros crus foram torrados, nervos desidratados de gado foram cozinhados e de alguma forma deglutidos. A “Grande Seca” afetou drasticamente a economia sertaneja, cuja maior riqueza era o gado, que lhe servia de capital de giro.Os rebanhos abrigados em outras paragens não foram suficientes para recomporem os plantéis, posto que a estiagem tinha também castigado o agreste, serras e vales úmidos onde, notadamente, se procurou o refrigério dos animais. As manadas que retornaram foram, como escreveu o cronista, “em diminuta quantidade”. Nem o dízimo foi coletado por contratadores, passando a ser administrado pela Fazenda Real.
No século XIX, nos anos de 1808 e 1809, uma seca parcial atingiu Pernambuco, na região do São Francisco, onde, segundo relatos da época, mais de quinhentas pessoas morreram por falta de comida. Nos anos de 1824 e 1825, aliada à varíola, uma grande seca gerou muitas mortes na região nordestina; os campos ficaram esterilizados e a fome chegou até os engenhos de cana-de-açúcar. Mais uma vez, uma seca de grande proporção provocou morte do gado e espalhou fome entre os nordestinos. Um saco de farinha de mandioca era trocado por ouro ou prata. Porém, nos anos de 1877 a 1879, a “mãe de todas as secas” atingiu todo o Nordeste, ceifando, segundo os historiadores, mais de quinhentas mil vidas! Em 1888 a 1889 outra grande seca atingiu Pernambuco e Paraíba, deixando lavouras destruídas e vilas abandonadas.
Já no início do século XX, nos anos de 1903 e 1904, vítimas da seca, milhares de nordestinos abandonaram a região. A partir dessa época, passou a constar na Lei de Orçamento da República uma parcela destinada às obras contra as secas. Em 1910, foram instaladas 124 estações pluviométricas no semiárido nordestino. Até então, haviam sido construídos 2.311 açudes particulares na Paraíba e 1.086 no Rio Grande do Norte. Nos anos de 1914 e 1915 uma seca intensa atingiu toda a região semiárida nordestina. Os anos de 1919 a 1921 foram palco de uma seca de grandes proporções na região e, em conseqüência dos efeitos dessa seca, cresceu o êxodo rural no Nordeste. Não obstante a esse vasto repertório de notícias sobre a seca, apenas em 1877 o fenômeno chamou a atenção das autoridades e da imprensa, tornando-se um problema de repercussão nacional.
Muyrakitan de Macedo ressalta que os registros de secas no Seridó tiveram um cronista impar: o fazendeiro acaririense Antonio Dantas Correa, que escreveu em 1847, ao 79 anos, as memórias sobre as intempéries e os períodos invernosos. Ele anotou, com comentários veementes, tanto as secas que presenciou, quanto as que escutou de “tradição verdadeira”. Antonio Dantas registrou que, em 1723 e 1724, “sedo também de poucos anos a sua povoação de gados, não sendo a morrinha muito considerável”, a fome foi aliviada pela “abundância de caça, e mel silvestre”. Deste depoimento, depreende-se que a colonização do Seridó ainda dava os primeiros passos. Mas no período das grandes secas, o estado de calamidade obrigava à migração de rebanhos e famílias, quando fracassavam todas as alternativas para alimentar a parentela e gado. Macedo assinala que “O criador do Seridó não abandona o gado nas crises. Emprega todos os esforços para salva-lo: retira; planta capim, corta-o, seca-o; vela pelo gado como quem vela por um enfermo humano. Ao perceber que a fome fez a rês cair, sem chances de soerguer-se de moto proprio, o vaqueiro a ‘levanta a pau’, não brutalmente espancando-a, mas içando-a com grossas toras de madeira, passadas sob seu ventre pela força de seis a oito homens que a põe na ‘rede’”. Mas era a última tentativa alimentada pela esperança de chuvas. Quando elas não chegavam a tempo, não restava outra coisa a fazer: “a morte planando em espirais de urubus anunciava a retirada”.
E aos poucos, as chuvas voltavam a cair nos sertões; o gado se alimentava dos primeiros brotos verdes que atapetavam os solos nas primeiras chuvas, vegetação que o sertanejo até hoje chama de “babugem”, forragem de dupla face: “uma fitando a vida e outra acalentando a morte”. Ração que, não raro, provocava disenteria fatal nas reses magras demais para suportar a intoxicação e desidratação. No ano de 1793, por exemplo, as chuvas voltaram “poucas e salteadas”, mas suficientes para anunciar o reinício das atividades rurais, tanto que foi recolhido do agreste o reduzido número de rebanho que sobreviveu. Como o gado bovino sofrera de duro golpe, a fome foi atenuada pela agricultura de subsistência (maxixes, jerimuns e melancias). A produção de feijão e milho foi pouca, pois faltavam sementes que no período da escassez foram consumidas, mas os restritos cereais foram complementados com o leite de cabras, gado de resistência maior às secas que o gado vacum. A vida pastoril voltava vagarosamente à normalidade, seguindo a sazonalidade de anos invernosos e outros nem tanto. A “Grande Seca” e a conseqüente desarticulação do mercado fornecedor de carnes dos sertões fizeram a pecuária sertaneja sofrer irreversível golpe: “Vegetará daí por diante num estado crônico de debilidade congênita”, nas palavras de Macedo.
Assim, o período coberto pelo presente livro atesta que a questão da seca na região nordestina é endêmica. Porém, ela sozinha, não é responsável por todos os malefícios existentes na região. Há questões históricas que ainda não foram resolvidas, tais como a falta de políticas públicas voltadas para a capacitação de mão-de-obra, além de políticas de geração de emprego e renda, e não apenas a existência das “bolsas” que trazem no seu bojo um desenvolvimento quase nulo aos seus beneficiários.