A chamada
“Grande Seca” que vigorou por três
anos, de 1791 a
1793, foi reconhecidamente a maior e mais dramática do século XVIII. No
primeiro ano, prenunciando-se a estiagem após os meses em que se esperavam
chuva, alguns criadores conduziram seus rebanhos para o agreste e para os
sertões mais úmidos da Capitania da Paraíba. O gado sedento e desnutrido que
permaneceu nos pastos seridoenses, já em setembro, foi quase totalmente
dizimado. Famílias inteiras tentavam escapar à seca, buscando o agreste, muitos
morrendo de fome pelas estradas. Outras ficaram e recorreram ao que a natureza
oferecia de seus produtos mais resistentes e aos restolhos animais. O limiar
entre a vida e a morte, neste caso, era traçado pelas contingências da
resistência digestiva. O chique-chique, cacto de eriçados e longos espinhos,
guardava em seu interior o miolo que poderia ser, no limite do desespero
humano, ingerido. Mas somente estômagos obstinados poderiam suportar. Muitos
alimentados com aquela iguaria da escassez, se escapavam à fome, sucumbiam à
intoxicação. É possível que todo tipo de proteína animal tenha sido posta na
pauta dietética: lagartos, aves, roedores e outros pequenos animais. No
entanto, rareada a caça nestes períodos, o sertanejo desnutrido não tinha
forças suficientes para sua perseguição contumaz, recorrendo in extremis às mais bizarras
alternativas. Nos caminhos incertos por onde passava, tudo poderia se
transformar em
alimento. Couros crus foram torrados, nervos desidratados de
gado foram cozinhados e de alguma forma deglutidos. A “Grande Seca” afetou
drasticamente a economia sertaneja, cuja maior riqueza era o gado, que lhe
servia de capital de giro.Os rebanhos abrigados em outras paragens não foram
suficientes para recomporem os plantéis, posto que a estiagem tinha também
castigado o agreste, serras e vales úmidos onde, notadamente, se procurou o
refrigério dos animais. As manadas que retornaram foram, como escreveu o
cronista, “em diminuta quantidade”. Nem o dízimo foi coletado por
contratadores, passando a ser administrado pela Fazenda Real.
No século XIX, nos anos de 1808 e
1809, uma seca
parcial atingiu Pernambuco, na região do São Francisco, onde, segundo relatos
da época, mais de quinhentas pessoas morreram por falta de comida. Nos anos de 1824 e 1825, aliada à varíola, uma grande seca gerou
muitas mortes na região nordestina; os campos ficaram esterilizados e a fome
chegou até os engenhos de cana-de-açúcar. Mais uma vez, uma seca de grande
proporção provocou morte do gado e espalhou fome entre os nordestinos. Um saco
de farinha de mandioca era trocado por ouro ou prata. Porém, nos anos de 1877
a 1879, a “mãe de todas as secas” atingiu todo o
Nordeste, ceifando, segundo os historiadores, mais de quinhentas mil vidas! Em 1888 a 1889 outra grande seca atingiu Pernambuco e
Paraíba, deixando lavouras destruídas e vilas abandonadas.
Já no início do século XX, nos
anos de 1903 e 1904, vítimas da seca,
milhares de nordestinos abandonaram a região. A partir dessa época, passou a
constar na Lei de Orçamento da República uma parcela destinada às obras contra
as secas. Em 1910, foram
instaladas 124 estações pluviométricas no semiárido nordestino. Até então,
haviam sido construídos 2.311 açudes particulares na Paraíba e 1.086 no Rio
Grande do Norte. Nos anos de 1914 e 1915 uma seca intensa atingiu toda a região
semiárida nordestina. Os anos de 1919 a 1921 foram palco de uma seca de grandes proporções na região e, em
conseqüência dos efeitos dessa seca, cresceu o êxodo rural no Nordeste. Não
obstante a esse vasto repertório de notícias sobre a seca, apenas em 1877 o
fenômeno chamou a atenção das autoridades e da imprensa, tornando-se um
problema de repercussão nacional.
Muyrakitan
de Macedo ressalta que os registros de secas no Seridó tiveram um cronista
impar: o fazendeiro acaririense Antonio Dantas Correa, que escreveu em 1847, ao
79 anos, as memórias sobre as intempéries e os períodos invernosos. Ele anotou,
com comentários veementes, tanto as secas que presenciou, quanto as que escutou
de “tradição verdadeira”. Antonio Dantas registrou que, em 1723 e 1724, “sedo
também de poucos anos a sua povoação de gados, não sendo a morrinha muito
considerável”, a fome foi aliviada pela “abundância de caça, e mel silvestre”.
Deste depoimento, depreende-se que a colonização do Seridó ainda dava os
primeiros passos. Mas no período das grandes secas, o estado de calamidade
obrigava à migração de rebanhos e famílias, quando fracassavam todas as
alternativas para alimentar a parentela e gado. Macedo assinala que “O criador
do Seridó não abandona o gado nas crises. Emprega todos os esforços para
salva-lo: retira; planta capim, corta-o, seca-o; vela pelo gado como quem vela
por um enfermo humano. Ao perceber que a fome fez a rês cair, sem chances de
soerguer-se de moto proprio, o vaqueiro a ‘levanta a pau’, não brutalmente
espancando-a, mas içando-a com grossas toras de madeira, passadas sob seu
ventre pela força de seis a oito homens que a põe na ‘rede’”. Mas era a última
tentativa alimentada pela esperança de chuvas. Quando elas não chegavam a
tempo, não restava outra coisa a fazer: “a morte planando em espirais de urubus
anunciava a retirada”.
E aos
poucos, as chuvas voltavam a cair nos sertões; o gado se alimentava dos
primeiros brotos verdes que atapetavam os solos nas primeiras chuvas, vegetação
que o sertanejo até hoje chama de “babugem”, forragem de dupla face: “uma
fitando a vida e outra acalentando a morte”. Ração que, não raro, provocava
disenteria fatal nas reses magras demais para suportar a intoxicação e desidratação.
No ano de 1793, por exemplo, as chuvas voltaram “poucas e salteadas”, mas
suficientes para anunciar o reinício das atividades rurais, tanto que foi
recolhido do agreste o reduzido número de rebanho que sobreviveu. Como o gado
bovino sofrera de duro golpe, a fome foi atenuada pela agricultura de
subsistência (maxixes, jerimuns e melancias). A produção de feijão e milho foi
pouca, pois faltavam sementes que no período da escassez foram consumidas, mas
os restritos cereais foram complementados com o leite de cabras, gado de
resistência maior às secas que o gado vacum. A vida pastoril voltava
vagarosamente à normalidade, seguindo a sazonalidade de anos invernosos e
outros nem tanto. A “Grande Seca” e a conseqüente desarticulação do mercado
fornecedor de carnes dos sertões fizeram a pecuária sertaneja sofrer
irreversível golpe: “Vegetará daí por diante num estado crônico de debilidade
congênita”, nas palavras de Macedo.
Assim,
o período coberto pelo presente livro atesta que a questão da seca na região
nordestina é endêmica. Porém, ela sozinha, não é responsável por todos os
malefícios existentes na região. Há questões históricas que ainda não foram
resolvidas, tais como a falta de políticas públicas voltadas para a capacitação
de mão-de-obra, além de políticas de geração de emprego e renda, e não apenas a
existência das “bolsas” que trazem no seu bojo um desenvolvimento quase nulo
aos seus beneficiários.