O chamado “distritão”, novo sistema eleitoral proposto pelo relator
da Comissão Especial da Reforma Política da Câmara, deputado Marcelo Castro
(PMDB-PI), é apontado por especialistas e setores mais progressistas da
sociedade como um grave retrocesso para a nossa democracia, pois trata-se de um
modelo não proporcional, ainda pior do que o atual sistema brasileiro, porque
acentua o personalismo e o abuso do poder econômico, em detrimento de partidos,
ideologias e propostas. É considerado tão ruim e ultrapassado que só é adotado
em dois países do mundo: Afeganistão e Jordânia. Ainda assim e por causa
disso, Eduardo Cunha, presidente da Câmara Federal, está trabalhando dia e
noite para aprová-lo ainda este mês. E não duvido que o malcheiroso distritão
passe, não duvido nada, porque a grande mídia nada fala sobre o assunto e você,
que só assiste à “grande mídia”, certamente ainda não sabe o que significará a
aprovação do monstrengo.
Na semana passada, li uma entrevista na “Carta
Maior” que agora reproduzo, pela sua relevância. De acordo com o deputado
Henrique Fontana (PT-RS), um dos maiores especialistas em reforma política, o
canto de sereia do “distritão” se baseia na simplicidade, já que os deputados
mais votados são os eleitos. Por isso, se apresenta de forma atraente, com o
discurso de que é uma solução para a distorção verificada hoje com o efeito
puxador de votos, ou o chamado “Efeito Tiririca”, que ocorre quando um deputado
muito votado consegue eleger também outros nomes de sua legenda com votação
inexpressiva. No entanto, apresenta desvantagens graves se comparado com
outros sistemas proporcionais, mais abertos à participação das minorias. No
sistema proporcional, todos os votos dados pelos cidadãos são contados na hora
de definir quem vai ocupar as cadeiras do parlamento. “No proporcional, não se
joga voto fora. No distritão, o candidato mais votado ganha a eleição e os
outros votos todos vão para o lixo”, diz o deputado. Segundo ele, no
sistema proporcional, candidatos com bandeiras específicas ou minoritárias têm
muito mais chances de se eleger. No distritão, a tendência é que sejam eleitas
as celebridades e os candidatos popularescos e muito radicais.
Outro problema do distritão é que favorece um
pluripartidarismo acentuado, problema não detectado nem mesmo em outras
variações do modelo, como o distrital misto adotado na Inglaterra. “Se hoje nos
temos 28 partidos com representação no parlamento, com o distritão, a
expectativa é que este número chegue, rapidamente, em 40 ou 45”, prevê Fontana.
E tem mais: no “distritão” defendido pelo PMDB, os partidos sequer importam.
“Cada deputado é praticamente um partido”, resume Fontana. “O deputado organiza
sua própria campanha, não precisa ter nenhuma solidariedade para construir
votação de legenda. Não precisa do partido para nada e não se dedica em nada ao
partido. É cada um para si e deus para todos”, denuncia. Para Fontana, o
modelo terá impactos graves na já difícil governabilidade do país. “Cada
votação terá que ser negociada não com partidos ou blocos, mas individualmente,
com cada um dos 513 deputados”, exemplifica. Segundo ele, o sistema acaba com
os partidos políticos ideológicos. “Uma democracia representativa não pode ser
feita por personalidades isoladamente”, afirma.
Mas ainda tem mais: o distritão
aumentará o custo das campanhas eleitorais para deputados, que atingirão cifras
equivalentes as dos governadores. “A tendência é que as 513 campanhas mais
caras do país sejam as eleitas. Por isso, o distritão é uma espécie de paraíso
para o poder econômico”, destaca Fontana. Segundo ele, como os deputados
terão que disputar votos em todo o estado, e não só apenas nas suas regiões, os
gastos serão mais altos. “Um deputado que hoje coloca carro de som em 20
municípios terá que colocar em 100”, exemplifica. Outro efeito negativo
do distritão é privilegiar o conservadorismo. “O distritão tende a
reeleger quem já é deputado”, aponta Henrique Fontana. Conforme ele, os
próprios partidos são induzidos a lançarem apenas seus nomes mais conhecidos,
impedindo o surgimento de novas lideranças. “Os partidos precisam concentrar os
votos dos eleitores que simpatizam com sua sigla. Por isso, têm que concentrar
nos nomes mais fortes”, explica.
É por essas e outras que a “grande
mídia” anda tão calada sobre o assunto, porque é isso mesmo o que ela deseja
que aconteça. E enquanto você fica indignado(a) com as mentiras plantadas pela
Globo, Veja & cia, Cunha desfila pelo corredores de Brasília dinamitando
cada ponto crucial do sistema democrático – e ele está muito perto de conseguir
seu objetivo, não se engane. A facilidade com que foi aprovada a construção do “Shopping
do Cunhão” é a prova maior do perigo que está rondando a democracia brasileira.
Na última semana, 60
cientistas políticos do Brasil se reuniram em um documento contra o “distritão”,
que foi enviado para Cunha na sexta-feira. Os especialistas definem o distritão
como “aberração institucional”. Para eles, o modelo exalta o personalismo dos
candidatos, encarece a campanha (o que pode aumentar o financiamento ilegal) e
transforma os partidos em meras siglas de registro de candidaturas,
enfraquecendo a democracia.
“O distritão exacerba as tendências ao
personalismo já presentes em nosso processo político, tornando dispensáveis as
identidades partidárias e levará aos píncaros os custos de campanha, pois cada
candidato, para ser eleito, precisará ainda mais do que hoje percorrer todo o
estado em busca de votos, criando comitês em todos os lugares possíveis, para o
que somas vultosas serão necessárias. Nem é preciso dizer que isto aumenta a
tentação do financiamento ilegal de campanha”, explica Cláudio Couto, professor
da Fundação Getúlio Vargas.
Em seu
site, o ativista Leonardo Sakamoto rememora que muitos dos jovens que
foram às ruas em junho de 2013, reivindicando participar ativamente da
política, não estavam pedindo o “distritão''. “Isso é uma resposta escolhida
pelo próprio sistema que embalou uma serpente em um pacote reluzente e,
sorridente, entrega de presente à população como se um modelo que pode
levar a um desequilíbrio na representação política fosse a solução
perfeita e final. Não estou demonizando o voto distrital misto de antemão,
mas ele pode causar outras distorções e não ajudar no controle
do representante pela população ou a baratear campanhas. Mais efeito causaria
uma mudança na forma de doação eleitoral por parte de empresas, que
deveria ser revisto ou duramente limitado. Mas isso, a maioria dos nobres
parlamentares não quer”, escreveu Sakamoto.
“Plebiscitos,
referendos, projetos de iniciativas populares, conselhos com representantes por
tema ou distrito são os primeiros passos, não os últimos. A política está sendo
radicalmente transformada pela mudança tecnológica. Participar do rumo das
coisas a cada quatro anos não será mais suficiente. Pois, em verdade, nunca
foi. Iremos participar em tempo real”, lembrou Sakamoto. Mas ao invés de
encaminhar essa discussão, o Congresso Nacional vai no sentido oposto, tentando
implementar fórmulas que beneficiam os parlamentares que já estão no poder ou
os que contam com currais eleitorais. Modelos que dificultam a eleição de quem
está mais à esquerda ou mais à direita no espectro político e poderiam – mais
do que os centristas – a forçar por mudanças.
É isso
que me tira o sono, e não a conta de luz que veio mais alta, e não meia dúzia
de ladrões que estão sendo investigados, enquanto centenas de outros ladrões
estão sendo acobertados – todos pelo mesmo motivo. O que me tira o sono é que
muita coisa vai mudar no Congresso Nacional e, por tabela, no Brasil, porque irá
mudar para pior, muito pior. O que me tira o sono é que a maioria dos
brasileiros, mais uma vez, nem sabe do que se trata e só irá saber quando tudo
já estiver consumado. Pense nisso.
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Fabiana Agra é advogada e jornalista