terça-feira, 19 de agosto de 2014

ARTIGO


     O comportamento social foi modificado abruptamente após o boom das redes sociais. Hoje, principalmente o Facebook e o Twitter, influenciam das relações amorosas e entre amigos às escolhas profissionais; das formas de reivindicar direitos às exibições artísticas e culturais. Influenciam, principalmente, na forma de se comunicar. A cena mais comum atualmente – eu aqui me incluo – é essa: você está em um restaurante “da moda” e pede o prato mais bambambam do cardápio; quando ele chega, pega o smartphone, fotografa a comida e imediatamente compartilha em redes sociais diversas esperando pelas "curtidas" dos amigos. É ou não é dessa forma?
     Se a mudança apenas no modo de se comportar frente a um prato de comida fosse a mais significativa, até aí estaria tudo mais ou menos. Mas não; o que estamos assistindo atualmente nas redes sociais é a escalada sem igual da “cultura do ódio” gratuito e indiscriminado, a qualquer coisa ou pessoa da qual se discorda. E a tragédia com Eduardo Campos trouxe consigo manifestações que ultrapassam qualquer limite do aceitável, senão vejamos.
    Um pastor chamado Daniel Vieira, de um tal “Congresso dos Gideões Missionários da Última Hora”, ligado a Silas Malafaia, espalhou nas redes sociais: “Morre Eduardo Campos, candidato a presidente. Hoje são 13, numero do PT. Deveria ter levado a DILMA!”. Apagou em seguida, com um pedido de desculpas ignóbil.
     Já Daniela Schwery, eterna “candidata” a qualquer cargo no PSDB em São Paulo (atualmente, a deputada estadual) conseguiu ir além; troladora oficial do partido (uma espécie de “Tiririca fascista”, segundo o blogueiro Kiko Nogueira), sua única bandeira e missão de vida é ser antipetralha e “antiesquerdopata.” Schwery conseguiu forjar um meme de Dilma Bolada (“Pra descer todo santos ajuda”) e então se pôs a despejar uma série de acusações. “PT em festa”; “Celso Daniel eliminado; Toninho do PT eliminado…” Nenhuma mensagem de condolência à família, nenhum sinal de respeito.
   Quando não se esperava mais nada, Roger, do Ultraje, conseguiu novamente se superar, horas depois de chamar Marcelo Rubens Paiva de “bosta” e declarar que o pai do escritor, Rubens Paiva, morreu “defendendo o comunismo”. Desta vez, Roger foi desrespeitoso e patético, ao se referir à repercussão da morte de Eduardo Campos: “Pronto, vai virar santo. E herói”. Esses últimos dias tem sido — e infelizmente, continuarão sendo — dias ricos em estupidez, maldade e desumanidade, a desfilarem nas redes sociais, a serem compartilhados por milhares de incautos.
    Aqui um parêntese, mais do que oportuno: uma das características mais marcantes da forma de se comunicar nas redes sociais é a exaltação. "Boa parte dos usuários de redes sociais costuma deixar o superego (consciência moral) de lado, especialmente quando emitem opiniões e debatem, de forma raramente ponderada, assuntos ligados a futebol, religião, política e 'BBB'. É por isso que se costuma dizer que, em sites como Twitter e Facebook, todo embate de ideias vira um Fla-Flu de opiniões acaloradas", disse Alexandre Inagaki, consultor em comunicação e marketing digital. A marca registrada nas redes sociais é a vontade de compartilhar tudo o tempo todo. Inagaki atribui isso a dois fatores: à carência e ao fato de as fronteiras entre o online e o offline estarem cada vez mais dissipadas. "Nesse comportamento há uma certa 'bigbrotherização' de nossas vidas", diz. O jornalista explica que, ao publicar um conteúdo, você espera que outras pessoas curtam, compartilhem, comentem a sua postagem. "E quanto mais coisas você posta em redes sociais, maior é a possibilidade de que você ganhe mais amigos e seguidores, aumentando seu status online", conclui.
  Outro comportamento comum nas redes é a autopropaganda: as pessoas sempre parecem mais felizes, ricas, satisfeitas e bem dispostas no mundo virtual, já que cada um de nós aprende logo a postar apenas o que consideramos o melhor de nós. "Em vez de "instagramarem" café da manhã com pão requentado, preferem exibir para seus seguidores fotos da viagem que fizeram ao exterior ou do jantar no restaurante da moda", afirma Alexandre. Para ele, esse comportamento mais exacerbado ou exibicionista nada mais é do que uma "lente de aumento da vida offline".       "Todas as qualidades e defeitos da sociedade aparecem de forma mais nítida nas redes sociais. Uma pessoa pode até tentar escamotear seus defeitos, como alguém que se produz todo para um primeiro encontro ou uma festa, mas, mais cedo ou mais tarde, eles aparecem".
  Todavia, o preocupante, mesmo, é a forma como estão sendo banalizadas e brutalizadas as dores mais íntimas de cada um, principalmente dos famosos e celebridades, nas redes sociais. Zelda Williams, filha de Robin Williams, decidiu se afastar das redes sociais, incomodada por brincadeiras de mau gosto na internet após a morte do pai. "Eu deixarei esta conta por um tempo enquanto me recupero e decido se devo ou não deletá-la", escreveu Zelda. A filha de Williams expressou sua frustração pela forma como fotos de família que ela postou online foram usadas e pela forma como brincadeiras de mau gosto na internet a atacaram. 
    De tudo o que já foi dito, chega-se a uma rápida mas pontual conclusão: a sociedade atual e, por conseguinte, os seus jovens e profissionais, passam por uma forte crise moral: a banalização e a tolerância do mal. A indiferença, a injustiça, a crueldade e o preconceito são expressos cotidianamente, em redes sociais e na mídia em geral. Christophe Dejours, psiquiatra e psicanalista francês, usa a expressão “banalização do mal” com o mesmo sentido que a filósofa Hannah Arendt a empregou no passado enquanto um processo de tolerância social para com o mal e a injustiça. O autor compara tal indiferença àquela vivenciada no período do nazismo em que o mal foi “desdramatizado” e as pessoas comuns, adotaram comportamentos inaceitáveis em outras épocas, tornando-se colaboradores ativos ou permissivos, na execução do mal a outros. Este processo de banalização se concretiza por meio da passividade, indiferença e resignação à injustiça e ao sofrimento.

     Mas, e hoje, os tempos são outros? Há que se refletir acerca de nossas práticas e posicionamentos enquanto propagadores e/ou meros curtidores desses absurdos nas redes, para que não venhamos a reproduzir, seja sutil ou descaradamente, essa banalização do mal que ressurgiu com força e parece que veio para ficar. Resta a cada um de nós refletirmos acerca do que queremos para a nossa sociedade e para as gerações futuras neste planeta que não nos pertence - mas que, a cada dia, se torna mais inóspito e cruel, e do qual nos arvoramos senhoras e senhores absolutos. É hora de pensar melhor. Reflitamos.