PARTE II
O genocídio dos tarairiús
O ápice do conflito
se deu na região do Açu, no Rio Grande do Norte e o palco da última batalha da
guerra foi o Acauã, mais precisamente na Serra da Rajada. Noticiando os
acontecimentos bélicos na ribeira do Carnaúba, um bando de 1689 detalhava a
guerra violenta[1]. Na
Casa-Forte do Cuó ficaram abrigados sucessivos terços militares enviados pela
Coroa para o combate aos índios revoltados, como as do Coronel Antonio de
Albuquerque da Câmara a partir de 1687 (co-proprietário da data de sesmaria da
Ribeira do Acauã) e posteriormente do Mestre-de-campo do Terço dos Paulistas,
Domingos Jorge Velho. Também as tropas do Coronel Jerônimo Cavalcanti de
Albuquerque e do Capitão-mor Afonso de Albuquerque Maranhão estiveram alojadas
na mesma casa-forte. Não é coincidência, portanto, que dentre os comandantes de
terços enviados para combater os tapuias
revoltados contra a penetração luso-brasílica estivessem, justamente,
co-proprietários da sesmaria da ribeira do Acauã. Nessa ribeira foram registrados
dois grandes massacres cometidos contra os nativos no decurso dessas guerras. O
primeiro, ocorrido na serra da Rajada, que se localiza entre os municípios de
Acari, Carnaúba dos Dantas, Jardim do Seridó e Parelhas, no período de 26 a 30 de outubro de 1689. O
resultado foi a morte de mil e quinhentos indígenas e prisão de trezentos, além
da morte de trinta homens das tropas de Domingos Jorge Velho. Os sobreviventes
do combate dispersaram-se, indo parar no lugar chamado por eles de Queicar xuc, que significa Saco do
Xiquexique. O outro combate ocorreu na serra da Acauã, situada entre os
municípios de Acari e Currais Novos, em 04 de outubro de 1690, no qual foram
presos mais de mil índios, havendo mortos em grande quantidade[2].
Diante de
todas as estratégias de luta contra os inimigos portugueses, os janduís foram
derrotados na ribeira do Seridó, pela bandeira chefiada por Domingos Jorge
Velho e finalmente tiveram o seu principal, denominado de Canindé, capturado e
preso. O historiador Ricardo Pinto Negreiros lembra que a guerra contra os
janduí durou até dez de abril de 1692, quando foram feitas as pazes entre o
governador geral do Brasil Antônio Luiz Gonçalves da Câmara Coutinho e os
tarairiús, que haviam ido dos campos do Açu a Salvador pedir pazes. A relação de índios mortos e
aprisionados é desconcertante e torna mais sombria a figura do bandeirante
paulista. No entanto, esse seguia, com método, as frias recomendações etnocidas
como aquela expedida pelo Governador Geral, em 1688, ao capitão Manoel Abreu Soares,
combatente na guerra contra os tapuias na ribeira do Açu.
Os
números de indígenas mortos em combate expressam o despovoamento dos sertões,
não o contrário; as guerras brasílicas assustavam os nobres de armas e brasões
assinalados, pela crueza que não dava trégua aos prisioneiros e feridos nos
campos de batalha. Empreendida com sucesso, a guerra de razia desocupou quase totalmente o Seridó da presença indígena ao
custo do etnocídio, sem, no entanto, esvazia-lo completamente. Muitos se
refugiaram em grotões sertanejos, em serras e outros logradouros de difícil
acesso, mas, mesmo assim, um incerto número deles foi posteriormente
aprisionado e aculturado[3].
Somente quando o sertão semiárido potencializou-se em deserto humano, em fins
do século XVII e início do XVIII, é que chegaram com mais perenidade os homens
brancos que se fixaram na Ribeira do Seridó, requerendo terras para a criação
de gado.
O “desaparecimento”
dos índios no Nordeste
Em 1757, o então Ministro português Marquês de Pombal
promulgou um Diretório que passou a regular os índios no Brasil. A legislação
pombalina estava baseada no discurso da “liberdade dos índios”, determinando
dentre outras medidas que os aldeamentos seriam elevados a categoria de Vilas,
com a instalação de Câmaras de Vereadores, a nomeação de um diretor leigo
responsável pelos indígenas, favorecendo ainda “para civilizar os índios” a
moradia de não-índios em terras dos aldeamentos, incentivando os casamentos
mistos, obrigando os indígenas ao trabalho agrícola e ao comércio. Com o
Diretório de Pombal, proibiu-se aos indígenas seus próprios nomes, determinando
usarem nomes e sobrenomes de famílias de Portugal, para se evitar que “na mesma
povoação existissem muitas pessoas com o mesmo nome”. Tornou-se obrigatório o
uso unicamente da língua portuguesa, entre outras medidas. A execução dessas
diretrizes favoreceu os arrendatários ilegais, latifundiários, os “homens de
bens”, vereadores que formavam as oligarquias políticas locais se apossaram dos
territórios indígenas. Por tal razão, nas áreas mais antigas da colonização os
indígenas foram dispersados, suas terras paulatinamente ocupadas, transformadas
muitas delas em fazendas que originaram as cidades interioranas do Brasil. A
legislação pombalina foi abolida por Carta Régia de1798, em função dos inúmeros
abusos contra “a liberdade” e os bens indígenas. No século XIX, as Câmaras
Municipais insistentemente solicitaram aos poderes públicos as terras dos
antigos aldeamentos para patrimônio dos municípios, alegando a necessidade de expansão
destes. Os vereadores legislavam em causa própria, uma vez que sendo a maioria
deles invasores nas terras indígenas, com a medição e demarcação das terras dos
aldeamentos, tiveram suas posses legitimadas. A partir de 1870 ,vários
aldeamentos foram declarados oficialmente extintos no Nordeste, favorecendo os
tradicionais esbulhos, legitimando-se os antigos invasores das terras
indígenas.
Helder
Macedo, no texto “Em busca dos desaparecidos: remanescentes indígenas no sertão
do seridó (séculos XVIII e XIX), diz que: “desaparecidos ou não das terras
sertanejas, pouco se fala sobre os índios; no máximo, ao conversarmos com
nossos avós ou com idosos, escutamos histórias de índios bravios repetirem-se
nesses enunciados orais”. São histórias
que remetem a caboclas-brabas e caboclos-brabos, que eram pegos “a dente de
cachorro e casco de cavalo”. Segundo
Macedo, “cabocla” era o nome dado às índias que conseguiram se safar das
Guerras dos Bárbaros, ficando escondidas nos altos das serras ou nas
proximidades; para ele, “sobreviventes desses conflitos, demonstravam-se
esquivas e contrárias ao desejo dos homens brancos de tornarem-nas esposas – ou
simples matrizes procriadoras – ou apenas amansá-las, docilizando o seu estado
selvagem”. Assim, através de anos de miscigenação, surgiu a figura do caboclo,
que, todavia, permaneceu índio, questionando as visões preconceituosas,
as teorias explicativas do desaparecimento indígena. Dessa forma, vários
povos indígenas no Nordeste, invisíveis desde fins do século XIX,
teceram uma história de resistência étnica afirmada nas primeiras décadas do
século XX, em razão das pressões que recebiam com o avanço do latifúndio sobre
as suas pequenas propriedades, sítios e glebas de terras onde permaneceram
resistindo, mobilizaram-se para exigirem seus direitos históricos negados.
A
presença de índias na formação das primeiras gerações das famílias do Seridó é
sentida por Medeiros, que, referendada em autores regionais como Luís da Câmara
Cascudo, Oswaldo Lamartine de Faria, Tarcísio Medeiros, Olavo de Medeiros Filho
e José Augusto Bezerra de Medeiros afirma: “Uma das contribuições dadas pelos
tapuias janduis (da nação Tarairius) para a formação do Seridó, foi a presença
de suas ‘matrizes’, isto é, a utilização de suas mulheres por parte dos
combatentes ‘brancos’ (nem sempre muito brancos), por ocasião do Levante do
Gentio Tapuia e mesmo posteriormente à dita campanha. Nos muitos anos que ficou
longe de ‘mulheres civilizadas’, a soldadesca aventureira usou e abusou da
indiada aprisionada. Dessa amálgama surgiu o sertanejo típico. Muitos daqueles
portugueses, recém-chegados da Europa, casaram-se no Seridó com mamelucas,
filhas de brancos com mulheres tapuias. A cabeça fortemente braquecéfala, tão
bem retratada pelos pintores de Nassau, ainda perdura nos sertões nordestinos.”
Expurgo,
extermínio, desaparecimento, extinção: tudo leva a crer que os tarairiús
realmente desapareceram do mapa do Seridó. As informações provenientes de
documentação de época, como as do Cartório de Pombal, nos falam de combates com
a participação do bandeirante Domingos Jorge Velho na serra da Rajada (próximo
a Carnaúba dos Dantas) em 1689, donde saíram mortos mil e quinhentos índios e
na serra da Acauã (próximo a Currais Novos) em 1690, de onde saíram mais de mil
prisioneiros. Cifras que chocam pelos altos números, mas que nos expõem o quão
brutal foi a penetração do mundo ocidental na América indígena.
O
desaparecimento dos índios é uma fala constante nos escritos da historiografia
clássica. Esse desaparecimento, no entanto, foi posto em xeque por Porto Alegre
em Rompendo o Silêncio: por uma
revisão do “desaparecimento” dos Povos Indígenas, onde problematiza esse
desaparecimento afirmando que o mesmo surge para explicar a desorganização das
sociedades tribais e justificar a expropriação de suas terras. Para o autor, os
documentos civis da Colônia e do Império, quanto mais próximos da República,
“tendem a negar a existência de índios – para que os não-índios possam
apropriar-se de suas terras -, sentimento que (in)conscientemente era, também,
apropriado por estes últimos”.
[1] (...) os combates
..... o gentio dos tapuios janduís ..... naquela serra rajada onde abelhas
deste tipo predominam e fazem mel ..... na qual chegou ele dito Domingos
Georges Velho aos vinte seis e até 30 aí permaneceu combatendo aqueles bárbaros
do mês de outubro [de] 1689 .... do grande Combate do dia vinte e oito do mês
de outubro de dito mês as tropas de Domingos Georges Velho teve de vitória mil
e quinhentos tapuios mortos e trezentos presos tendo morrido das tropas 30
homens além d’outros (...)
[2] MEDEIROS FILHO, Olavo
de. Notas para a História do Rio Grande do Norte, p. 114.
[3] Há relatos familiares
até hoje na região do Seridó, de ancestrais indígenas que foram “pegos a dente
de cachorro e casco de cavalo”, eram os caboclos e caboclas brabas que se
confundiram com as linhagens seridoenses ou lhes serviram como mão-de-obra. A
persistência deste tipo de narrativa, ainda viva na memória coletiva nos coloca
diante do problema apontado por Julie Cavignac: “Será que, longe de uma visão
unilateral que considera unicamente os efeitos destruidores de uma colonização
europeia ainda em vigor, não seria mais interessante levantar a hipótese de que
a configuração simbólica nativa contaminou os ‘brancos’ – e os ‘negros’!, a tal
ponto que as representações do mundo humano, natural e sobrenatural
encontram-se até hoje imbricadas até constituir um sistema coerente?”.
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