quinta-feira, 26 de março de 2015

Retalhos da nossa história: curimataú e seridó na extensão do brejo paraibano


por Fabiana Agra *

A organização do território municipal paraibano durante o período colonial
No século XVIII, a seqüência bandeira-curral-fazenda-arraial responsabilizou-se pela formação da sociedade sertaneja na Paraíba. A religião também se tornou um dos pilares da sociedade sertaneja, reunida em torno da capela de seus santos padroeiros; outro importante elemento, formador dos arraiais que se converteram, com o tempo, em povoados, vilas e cidades, são os “sítios”.
Nos sítios e fazendas não apenas se criava apenas o gado como também se plantavam gêneros de subsistência, algodão e cana-de-açúcar. O algodão servia para o fabrico de utilidades domésticas e panos rústicos. Já a cana-de-açúcar ambientou-se nos baixios e aguadas para produção de rapadura – alimento básico na dieta do sertanejo. Porém, a maior parte da rapadura consumida pelos sertanejos vinha dos engenhos do brejo.
Nessa época, os processos de salga da carne ainda não tinham sido introduzidos no interior paraibano, quando o gado era abatido, era necessário consumir a carne imediatamente; após, aproveitava-se o couro, exportado ou destinado a ensacar fumo, no litoral. Do couro, o seridoense retirava praticamente tudo – roupas, calçados, utensílios e até cobertura para latadas. Do gado também provinha o leite, usado na fabricação de queijos e doces, bem como variada culinária, no centro da qual estava a buchada, como prato típico da região.
O século XVIII representou a integração da capitania da Paraíba, através da ocupação do território. Isso se positivou quando os colonos, sempre usurpando as terras indígenas, chegaram a Bananeiras, na fronteira do brejo com o Rio Grande do Norte, e a Cuité, na serra, em 1760. Quando a região de Monteiro foi ocupada em 1800 e Princesa Isabel viu-se conquistada em 1805, a Paraíba completava a unidade territorial.

Brejo de Areia e Bananeiras
No início de século XVIII havia diversas povoações no interior paraibano. Sem falar na Cidade da Parahyba e em Cabedelo, esta na foz do Paraíba, havia a aldeia de Aratagui ou Alhandra (vale do Gramame) e a aldeia de Jacoca (atual Conde) às margens do rio Ibiraí, ambas ao sul da capital, no litoral. Também no litoral já estava fundada a Baia da Traição na foz do rio Mamanguape e por este rio acima, encontrava-se a aldeia de Preguiça (mais tarde Monte-Mor). As aldeias de Taipu e Pilar ficavam na várzea, às margens do Paraíba. Depois surgiram as aldeias do Boqueirão, às margens deste rio e de Campina Grande, nos contrafortes da Borborema (serra do Bodopitá). No alto sertão existia a aldeia de Piranhas (hoje Pombal) às margens do rio Piancó. Até 1755 não existiam vilas na Paraíba, só havia a “Cidade da Parahyba”, com jurisdição em toda a capitania.
No período de 1801 a 1822 foram criadas duas vilas no interior da Paraíba: Vila Real de São João do Cariri de Fora (instalada em 1803) na povoação e julgado do Cariri, pertencente ao município de Vila Nova da Rainha. A outra foi a Vila Real do Brejo de Areia, desmembrada de Monte-Mor e instalada em 1818.
Brejo de Areia foi elevada à “freguesia” com o nome de Nossa Senhora da Conceição, pelo Alvará Régio de 18 de maio de 1815, sendo elevado à condição de vila em 30 de agosto de 1818. Sua emancipação política se deu em 18 de maio de 1846. Já o município de Bananeiras foi criado em 9 de maio de 1833. criou o Município de Bananeiras, verificando-se sua instalação em 10 de outubro do mesmo ano. O distrito foi criado pela Lei provincial n.º 5. de 26 de maio de 1835. A Lei provincial n.º 690, de 16 de outubro de 1879, concedeu foros de cidade à sede municipal. Mas foi o desenvolvimento de Brejo de Areia que colocou esta vila na vanguarda das povoações do interior da Paraíba e, por tal motivo, elevada à categoria de cidade, com o nome de “Areia” – sendo, portanto, a primeira vila paraibana que mereceu tal distinção (Lei Provincial nº 2, de 18 de maio de 1846).
O maior crescimento da rede municipal paraibana, sobretudo a partir de 1850, é atribuído ao desenvolvimento da cultura do algodão, que propiciou a abertura de estradas, a dinamização do comércio e a intensificação do povoamento regional, provocando o surgimento de vilas que se transformaram em cidades e originaram municípios.

O povoamento do Seridó Oriental e do Curimataú Ocidental
Em abril de1545, portugueses e índios janduís encontraram-se pela primeira vez frente a frente em solo da Ribeira do Seridó e cumprimentaram-se. A expedição do Seridó possuía o caráter declarado de fazer contato com os índios, missão cumprida por Antônio de Mendonça e Vasconcellos, José Britto de Almeida, Pero Loppes de Maceddo e Natannael Gomes Soares. No entanto, contatos dessa natureza não tiveram continuidade tampouco marcaram avanço colonial português em solos do Seridó e do Curimataú. O ano de 1597 é o marco da conquista colonial desse espaço, quando a expedição colonizadora organizada por Feliciano Coelho e Duarte da Costa partiu das capitanias da Paraíba e Pernambuco, principalmente de Olinda, Igaraçu e Goiana, seguindo duas rotas: de leste para oeste, pelo Boqueirão de Parelhas e do sul para o norte pela Borborema, chegando, por fim, ao Seridó. A razão desse povoamento tardio é que a região era praticamente desconhecida para a administração colonial e suas terras foram muitas vezes solicitadas tanto pela capitania da Paraíba como pela capitania do Rio Grande do Norte.
A partir de 1692, com o fim da guerra dos Bárbaros, a área foi desocupada a custo do extermínio e do aldeamento dos indígenas, possibilitando a chegada dos primeiros homens brancos que se fixaram na região. Não se tratavam, porém, dos donos das terras, mas sim, por precaução, de seus curraleiros, que se encarregariam de acostumar o gado ao pasto, construir currais e os precários casebres de taipa. A região onde hoje se situa os municípios de Picuí, Pedra Lavrada e Cuité era conhecida no início do século XVIII como “Ribeira do Acauã” – depois conhecida como “Ribeira do Seridó”. Nos anos 40 do século XVIII, na Ribeira do Seridó e seus afluentes, o quadro que se apresentava era o de um território pontilhado por fazendas de criar gados e cuja concentração de pessoas se acumulava em quatro manchas populacionais, surgidas nos arredores de templos católicos situados nos terraços fluviais dos rios Seridó, Piranhas, Espinharas e Acauã.

A Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana
Em uma época onde a demarcação das capitanias era vaga e a vastidão da freguesia do Piancó reinava sobre a quantidade reduzida de ministros eclesiásticos, tornou-se interesse da Igreja Católica a racionalização do seu território. Assim, foi desmembrada da freguesia de Nossa Senhora do Bom Sucesso uma nova freguesia, sendo escolhida a povoação do Caicó para servir de sede para a mesma, que seria intitulada de Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó, sendo criada em 1747 e instalada em 15 de abril de 1748. A demarcação da freguesia baseava-se no curso natural dos rios, agregando duas ribeiras: a das Espinharas e a do Seridó. Assim, o Seridó ficou sendo representado não apenas pelo curso d’água homônimo, passando a abranger uma malha de rios: Acauã, Seridó, Espinharas e Piranhas. Segundo Dom Adelino Dantas, o território compreendido nessa nova paróquia, a de Santa Ana do Seridó, era muito vasto. Na Paraíba, abrangia toda a região do Seridó e parte do Curimataú Ocidental, incluindo-se também os territórios das futuras freguesias de Patos, de Santa Luzia, de Pedra Lavrada, Cuité e Picuí.

Pedra Lavrada
O primeiro povoamento efetivo da região do Seridó oriental e Curimataú ocidental teve início no ano de 1760, com a construção de uma capela, a qual tinha sido solicitada ao bispo de Pernambuco, pelo capitão-mor Mateus Bezerra Cavalcanti e José Bezerra da Costa, onde hoje se encontra a Matriz de Nossa Senhora da Luz. Mas presume-se que já em 1750, de uma fazenda pertencente à família Gomes Barreto, originou-se a povoação de Itacoatiara, que depois passou a ter o nome atual, em virtude da existência de “pedras lavradas” distantes cerca de um quilometro de onde está erguido à cidade. Em 29 de maio do mesmo ano, a capela foi inaugurada com uma grande procissão, tendo sido benta em 1789. A freguesia foi criada através da Lei provincial n° 02, de 19 de agosto de 1859. O atual município de Pedra Lavrada integrou, inicialmente, o território da antiga povoação de Nossa Senhora do Bom Sucesso (atual município de Pombal), no vale do Piancó; figurou também como parte do território de Vila do Príncipe (atual município de Caicó, no Rio Grande do Norte). A freguesia de Cuité havia sido criada a 12 de agosto de 1801, desmembrada que foi da freguesia de Santana de Caicó. Por integrar a freguesia de Nossa Senhora das Mercês da Serra do Cuité, o território lavradense pertenceu à vila do Brejo de Areia e, a partir de 1826, ao território de Bananeiras, permanecendo nesse status até 25 de junho de 1872, quando foi criado o município de Cuité, sede da comarca da Borborema. Por último, o território lavradense passou a integrar o município de Picui, instalado em 24 de novembro de 1904, após a transferência da comarca de Cuité para aquela nova sede.

Cuité
Em 08 de dezembro de 1704, o Conde de Alvor requeria a primeira data (Sesmaria nº 43), na serra de Cuité, com o nome de “Data do Olho D’água do Cuité”, do qual “fez pinhão”, tirando três léguas de terra por uma, como de costume, recebendo a concessão no governo de Fernando de Barros e Vasconcelos. No entanto, o efetivo povoamento de Cuité se deve a Caetano Dantas Correia, que em 31 de outubro de 1784, requereu a Data da Lagoa do Cuité e, procurando povoa-la, começou por edificar a capela de Nossa Senhora das Mercês. Posteriormente, o fazendeiro doou meia légua de terra tirada daquela data que tinha requerido, tirando-a em torno da capela, com o propósito de se constituir o “patrimônio da santa”. Em 25 de agosto de 1801 a capela passava à sede de freguesia, desligando-se da freguesia de Caicó, através de decreto assinado pelo então bispo de Olinda, dom José Joaquim de Azevedo Coutinho.
O distrito de paz de Cuité foi criado pela lei nº 15, de Outubro de 1827 e seu termo judiciário foi criado pela lei nº 4 de 27 de maio de 1854. Em 27 de maio de 1854, pela Lei nº 4, a povoação da Serra do Cuité foi elevada a categoria de vila. O município de Cuité foi então desmembrado de Bananeiras, tendo um território que abrangia as áreas ocupadas atualmente pelos municípios de Barra de Santa Rosa, Picui, Nova Floresta, Frei Martinho, Nova Palmeira, Cubati e Pedra Lavrada, compreendendo 3.577,4 km2, que se estendiam pelos brejos serranos, fazendo limite com o Rio Grande do Norte e a depressão do Curimataú. Do ponto de vista jurídico, toda essa área pertenceu ao município de Brejo de Areia, e, logo depois, em 1862, já figurava como parte integrada da recém-criada comarca de Bananeiras. A comarca de Cuité somente foi criada em 25 de junho de 1872, sob a denominação de Comarca da Borborema. Em 29 de outubro de 1904, pela Lei nº 212, a comarca de Cuité foi transferida para Picui, ocorrendo sua instalação em 24 de novembro do mesmo ano. Surgia assim, no cenário estadual, o município de Picui, enquanto Cuité era reduzida à categoria de vila.

Picuí
No dia 26 de dezembro de 1704, Dona Isabel da Câmara, Capitão Antônio de Mendonça Machado, Alferes Pedro de Mendonça Vasconcelos e Antônio Machado requereram, e obtiveram por sesmaria (Data e Sesmaria nº 48), um total de doze léguas de fundo por uma légua de frente (3×1 para cada heréu), próximo ao riacho que era chamado pelos nativos de Pucuhy. As penetrações daí decorrentes, ao que parece, tiveram como saldo apenas a implantação de algumas fazendas de gado. Entre 1750 e 1760, novas correntes de povoamento se registraram, inclusive adquirindo as primeiras propriedades ali instaladas. Inúmeras famílias vindas principalmente de Pernambuco, Rio Grande do Norte e do brejo paraibano, iniciaram a colonização. Segundo a tradição oral, as famílias pioneiras da região foram: Costa, Barros, Oliveira, Farias, Macedo, Lima, Azevedo, Dantas, Ferreira, Gomes, Araújo, Pereira, Estrela, Henriques, Garcia do Amaral, Casado, Medeiros, Dantas, entre outras. No transcorrer do século XVIII, tropeiros seridoenses que desciam nordeste abaixo para vender carne de sol, feijão marcassar, milho, farinha de mandioca, dentre outros, acampavam nas cercanias do rio Pucuhy, para reabastecerem as energias de negociantes e animais. Aí começou o pequeno povoado. Após a concessão das sesmarias ao longo do século XVIII, a região do Seridó oriental e do Curimataú ocidental da Paraíba continuaram sendo escassamente povoadas, pois a maioria das datas concedidas aos sesmeiros se constituíram apenas em criatório para o gado, sendo que muitas delas não chegaram nem mesmo a ser utilizadas. A partir do final do século XVIII, muitos sesmeiros que adquiriram datas de terra na região de Picuí abandonaram suas propriedades, por não conseguirem cumprir as exigências importas pela Coroa Portuguesa. Através da conversa dos tropeiros, vários paraibanos e pernambucanos se interessaram pelas terras, praticamente abandonadas, e partiram para obte-las junto ao governo da então capitania da Paraíba.
O século XIX se iniciou com secas nos anos de 1804, 1808 e 1809, tendo continuidade em 1814 e no período de 1816 e 1817. Nessa época, a revolta dos rurícolas era muito grande, pela falta de apoio dos governos às atividades agropecuárias. Prevendo então nova seca em 1824, o governo da província da Paraíba resolveu, em caráter de urgência, doar enormes quantidades de terras que se tornaram devolutas, às pessoas que nela quisessem residir e torna-las produtivas. No ano de 1824, os irmãos Joaquim José da Costa, Lázaro José Estrela, José Joaquim da Costa e Maximiano José da Costa chegaram à região, provenientes dos altos sertões pernambucanos e trazendo consigo bastante dinheiro em ouro e prata, além de muitos animais e alguns escravos para constituírem fazendas. Dessa forma, os quatro irmãos requereram e obtiveram extensa faixa de terras no atual município de Picuí e, quando se estabeleceram na região, os irmãos Costa, de dois em dois meses, abatiam bois, faziam carne de sol e transportavam em tropas de burros-mulos, até as cidades de Paraíba e Recife, onde eram vendidas a atacadistas. Os burros-mulos voltavam carregados com tecidos, sal, rapadura, café, querosene, sabão e fumo.
No entanto, Picuí tem como certidão de nascimento a epidemia de cólera-morbo que se abateu sobre a região no ano de 1856. Em meio ao horror das dezenas de mortes diárias em decorrência da terrível doença, o povo que vivia nas fazendas da região entendeu que uma promessa poderia fazer cessar o surto de cólera. E assim, surgiu a idéia entre os principais fazendeiros das redondezas, da edificação de uma capela invocando a intercessão de São Sebastião; fizeram a promessa e acertaram que o padroeiro do lugar seria o santo mártir. Em 16 de agosto de 1860, os fazendeiros da região se reuniram para dar um nome ao povoado que crescia em torno da capela, concordando que fosse dado o nome do santo ao povoado. E, assim, o povoado nascente passou a chamar-se “São Sebastião do Triunfo”, sendo o último termo uma alusão à vitória brasileira na Guerra do Paraguai.
A freguesia de São Sebastião foi criada pela Lei Provincial nº 440, de 18 de dezembro de 1871, integrante do município de Cuité, e pela Lei Provincial nº 597, de 26 de novembro de 1874, foi criado o distrito de paz da povoação de São Sebastião do Triunfo. Com o correr dos anos, o povo, em vez da expressão “São Sebastião do Triunfo”, passou a chamar o povoado simplesmente de “Triunfo”, nome que foi substituído por Picuhy quando, pela Lei Provincial nº 876, de 27 de novembro de 1888, a povoação foi elevada à categoria de vila. Logo depois, foi criado o município do mesmo nome – Picuí – pelo Decreto nº 323, de 27 de fevereiro de 1902, instalando-se oficialmente o Município de Picuí em 09 de março de 1904. A vila de Picuí finalmente foi elevada à categoria de cidade, em virtude da Lei Estadual nº 599, de 18 de março de 1924, cujo município, considerado até então, um dos maiores da Paraíba, abrangia também os atuais municípios de Cuité, Nova Floresta, Barra de Santa Rosa, Pedra Lavrada, Cubati e Frei Martinho.

Seridó e Curimataú na extensão do brejo paraibano
A subordinação da Igreja ao Estado no Brasil Colônia iria refletir, também, no ordenamento do espaço e, como principal e maior unidade administrativa da colônia, a capitania dividia-se primeiramente em comarcas, estas em termos e por fim os termos em freguesias. Outras figuras importantes para se caracterizar o Seridó e o Curimataú, eram as fazendas da região, que produziam, em anos de inverno regular, quase todo o necessário ao modesto consumo de seus habitantes. O comércio do gado encarregava-se de atingir outros centros mercantis, pois para refazer o plantel que fora comercializado no ano anterior, os fazendeiros da região compravam gado no Piauí e, no seu retorno, abasteciam-se com a farinha e a rapadura do cariri e com o sal cearense. E quando passava a fase de engorda do gado, os fazendeiros vendiam-no nas feiras da Paraíba e Pernambuco, voltando, principalmente dos brejos paraibanos, com outros gêneros que supriam as necessidades da fazenda: milho, feijão, farinha, fumo e aguardente; além de trazerem de Pernambuco mercadorias mais elaboradas como secos e molhados, tecidos, ferrarias, louças etc. Dessa forma, a vida urbana local iniciou-se pouco a pouco e a muito custo se firmou, “desprezível como empório comercial”, visto que o movimento do gado trazia consigo as mercadorias de que os seridoenses necessitavam.
Antes da seca de 1791, os negócios eram realizados com o “gado em pé”, que era vendido para as feiras de gado do litoral da Paraíba e Pernambuco. Os centros urbanos como Salvador e Recife eram abastecidos pelas carnes-verdes do gado criado nos sertões e negociados nas fazendas e vilarejos próximos a essas cidades. Mas havia pastos de engorda para as reses esquálidas pela travessia dos sertões; as reses que abasteciam o mercado de carne-verde do Recife paravam para engordar em algum ponto entre as vilas de Igarassu e de Goiana. Porém, a procura por carne fresca nestas cidades e região circunvizinhas fez com que ocorresse a desvalorização do gado sertanejo, já que a longa jornada até a ponta final do mercado emagrecia o rebanho, demandando o repouso do gado em pastagens não raro arrendadas por atravessadores desse tipo de comércio – sem contar com a mortandade do gado pelos caminhos.
Para evitar a desvalorização do gado, por volta de 1740, regiões do norte do Piauí, do Ceará (principalmente na Vila de Aracati) e do Rio Grande do Norte (nas margens dos rios Mossoró e Açu), passaram a fazer o “salgamento” das carnes e couro em um processo de beneficiamento em escala expressiva que ficou conhecido como “charqueadas”, praticadas nas “oficinas”, “salgadeiras” ou “fábricas de carne-seca”. A conservação da carne através do salgamento fez com que fosse transportada em segurança para os mercados longínquos de Recife, Olinda e Salvador. Através da capitania de Pernambuco, o charque chegava até Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e sul da Bahia.
Toda a região do Seridó Oriental e Curimataú Ocidental já pertenceu ao brejo, mais precisamente aos municípios de Brejo de Areia e Bananeiras. Em 18 de maio de 1815, com a criação da Vila Real de Brejo de Areia – cuja instalação só ocorreu em 30 de agosto de 1818 –, passaram a fazer parte de seu território, além das povoações de Alagoa Grande, Bananeiras, Guarabira e Pilões, os povoados de Cuité e Pedra Lavrada, situados no Curimataú Ocidental e Seridó Oriental, respectivamente. Em 27 de maio de 1854, pela Lei nº 4, a povoação da Serra do Cuité foi elevada à categoria de município, e seu território abrangia as áreas ocupadas atualmente pelos municípios de Barra de Santa Rosa, Picui, Nova Floresta, Frei Martinho, Nova Palmeira, Cubati e Pedra Lavrada. Em 1862, foi integrada à recém-criada comarca de Bananeiras, sendo que sua elevação também à comarca data de 25 de junho de 1872, sob a denominação de “Comarca da Borborema”, mas o benefício foi suprimido em 1891 sendo restabelecido somente em 1900.


* Fabiana Agra é advogada e jornalista

sábado, 21 de março de 2015

O ÓDIO (TERCEIRIZADO) NOSSO DE CADA DIA


Desde que a última rodada de manifestações golpistas do “Fora Dilma” começou, pude observar e constatar a escalada que o ódio gratuito está galgando, que o “odeio-pelo-simples-fato-de-odiar” está tomando de assalto os corações e as mentes daqueles que se deixaram levar pela intenção da “grande mídia” em incutir o ódio sem medidas a tudo que lembra Dilma, Lula e o partido político do qual eles fazem parte. Observo a tudo e não posso deixar de ficar preocupada, pois o que está acontecendo no Brasil foi o que ocorreu na Alemanha nazista e na Itália fascista durante a 2ª Guerra Mundial – e, ao menos as consequências da propaganda nazista, a maior parte dos que agora leem este artigo conhece.
Hitler e Goebbels dedicaram um esforço especial para descobrir como utilizar-se da propaganda em favor do regime nazista, moldando o comportamento dos alemães de acordo com aquilo que era de seu interesse. Após a chegada do nazismo ao poder em 1933, o führer estabeleceu o “Ministério do Reich para Esclarecimento Popular e Propaganda”, encabeçado por Joseph Goebbels. O objetivo do Ministério era garantir que a mensagem nazista fosse transmitida com sucesso através da arte, da música, do teatro, de filmes, livros, estações de rádio, materiais escolares e imprensa. A tempo, Goebbels é o autor daquela célebre mas infame frase, tão atual em nossos dias: "uma mentira cem vezes dita, torna-se verdade".
Pois bem: o que se vê no Brasil atual é a mesma tentativa, de utilizar a propaganda através da mídia – no nosso caso, para demonizar e derrubar uma presidenta legitimamente eleita e que reassumiu seu posto há menos de três meses, e já tendo de enfrentar todo o tipo de ameaça que alguém pode suportar. O pior é que as pessoas perderam de vez a compostura e a vergonha de parecerem ridículas perante seus pares, ao utilizarem as redes sociais para atacar inclusive a pessoa de Dilma Rousseff, através de palavrões, de palavras de baixo calão e de cunho machista. E o que mais me deixa estupefata é que grande parte dos ataques vem justamente de mulheres!
Ora, é democrático e salutar que as manifestações ocorram quando a população encontra-se insatisfeita em decorrência da crise econômica que, após tomar de assalto vários países europeus, agora chegou com força ao Brasil. É mais do que legítimo sair às ruas e gritar por melhores condições e oportunidades. O que se mostra inconcebível, é o ataque pessoal, é tentar ferir de morte a pessoa que está por trás do cargo. É disso que falo.
Jandira Feghali, líder do PCdoB na Câmara Federal, lembrou em seu último discurso acerca das manifestações do dia 15 de março: “Que espécie de manifestação acolhe e divide o democrático espaço das ruas com um clamor pela ajuda dos militares? Atos em que até ex-agentes do DOPs discursam? Ideias atrasadas que ficaram pela História, mas que atualmente parecem ter saído das catacumbas do ostracismo ávidas por alijar nossos filhos e netos dos ares da liberdade. Da Avenida Paulista à orla de Copacabana, nas inúmeras faixas espalhadas, o ódio em sua face mais colérica era mostrado. Misturados aos protestos, inflados pelo aparato midiático e o financiamento de grupos econômicos, faixas verde e amarelo pediam soluções que iam desde a morte de comunistas e o enforcamento de Lula e Dilma, ao retorno da Ditadura, com intervenção militar, o fechamento do Supremo Tribunal Federal. Vimos suásticas por todo o lado, além de frases em inglês, alemão e até italiano. Este, verdadeiramente, não é o Brasil”. É disso que estou falando.
A insatisfação popular não pode desaguar neste tipo de retrocesso, dando espaço para que seus supostos líderes golpistas, de forma oportunista, manipulem a informação para milhares de pessoas, aumentando o incômodo generalizado pela atual crise econômica e a investigação em curso sobre os casos de corrupção.
É preciso combater tais descalabros com urgência, seja no sentido de dialogar com a juventude – que está reproduzindo o machismo “moderno”, através de ataques e ofensas à mulher eleita presidenta do país, seja na demonstração de que os comentários preconceituosos e sexistas para com a presidenta Dilma Rousseff “não são apenas uma reprodução dos estereótipos, padrões e normas do capitalismo impostas às mulheres, mas são também o reflexo da indignação dos setores mais conservadores desse país por ela ser a representante máxima do poder e por representar um projeto que pensa no povo e governa para todos”.
Neste sentido, Carmen Foro, vice-presidenta da CUT, publicou no site da entidade: “Temos um dia de exaltação às mulheres no mês março, enquanto o restante do ano o que se vê são condutas que destacam o machismo social, seja na mídia, no trabalho ou em nossas casas. Precisamos nos posicionar em defesa da mulher que elegemos democraticamente para governar e mudar o nosso Brasil, sim nosso, de homens e mulheres, enfatizar a essa parte da sociedade quem é Dilma Rousseff e de quais lutas ela fez e faz parte, para que entendam que a mulher, mãe, avó, presidenta e acima de tudo, uma lutadora pelos direitos de liberdade e evolução do nosso país perante o mundo”. É disso mesmo que falo.
Mas não é isso que estou vendo - seja nas ruas, seja nas lojas, seja nos restaurantes, seja nas redes sociais: o que vejo são uns tantos e tantas, ensandecidos, deixando sua raiva cega escorrer pelos cantos da boca, num sorriso de escracho e de deboche entrecortado por dezenas de palavrões. E você há de convir: não dá para debater com esse tipo de gente, ao menos eu não me presto a este papel, pois responder com argumentos a tais ataques é continuar jogando pérolas aos porcos. Eu não costumo perder tempo com pessoas que, decerto por motivos pessoais, descarregam sua raiva e frustração no bode expiatório da vez.
Se aqui estou falando dessas pessoas é tão somente para alertar àqueles que ainda não caíram nesse conto de vigário: a livre manifestação sempre será bem-vinda, desde que através da coerência e de proposituras; gritar nas ruas sempre será salutar, mas incorrer na instabilidade democrática é mais do que temerário, é o fundo do poço para o Brasil. Como bem destacou Dilma Rousseff, em recente pronunciamento, a liberdade de expressão de hoje foi garantida por pessoas como ela. E isto deve ser valorizado e constantemente lembrado por todos nós – e não sair berrando o preconceito que é seu, aos quatro cantos, somente porque o presidente do Brasil é A PRESIDENTA...
Vamos avançar o debate! Que tal parar de chamar a presidenta de “puta”, de “vadia”, de “vagabunda”, e chamar também para si, a responsabilidade de ajudar o Brasil a sair da crise? Eu e milhares de pessoas já estamos fazendo isso, junte-se a nós.


* Fabiana Agra é advogada e jornalista.

segunda-feira, 16 de março de 2015


No dia 15 de março, teve muita gente nas ruas e, pelo país afora, centenas de milhares falaram, se expressaram. Em São Paulo, a Polícia Militar de Geraldo Alckmin estimou em um milhão de pessoas, enquanto o Data Folha estimou em 210 mil, um número mais razoável e dentro das previsões. Nas demais capitais o número ficou muito aquém do que se esperava – mas sim, com muita gente nas ruas.
Quinze de março, para quem não era nascido ou quem não lembra mais, era a data em que os presidentes tomavam posse durante o período da ditadura militar. E pelo que se viu, há muita gente saudosa dessa época. Em Brasília e nas capitais dos estados, não foram poucos os cartazes e faixas reivindicando intervenção militar – chegaram até a pedir a intervenção pelos Estados Unidos, vejam só!
Para Luciana Genro, candidata a presidenta pelo PSOL, “O que salta aos olhos é que a situação exige uma mudança profunda. Mas nem tudo o que as ruas falam sugerem um bom caminho. As faixas em favor do golpe são um sintoma claro de que mesmo que milhares tenham tomado as ruas, não se abriu um caminho novo e progressista. Não tenho dúvida de que a maioria dos que estavam nos atos não querem uma saída fascista e nem querem ser controlados por aparatos burocráticos. Por isso Bolsonaro e Paulinho da Força Sindical foram hostilizados. As pessoas querem mudanças, mas para que a direita não ganhe na inércia é preciso avançar em um programa”. E continuou dando o tom: “O que vimos pelo Brasil foram atos contra o governo Dilma e contra o PT que expressaram uma indignação geral contra a corrupção e a carestia. Entretanto, ao não ter uma ideologia crítica, anticapitalista, o que predominou foi a ideologia da classe dominante, e no guarda chuva desta ideologia as posições de direita e extrema direita também se expressam”.
Já a grande mídia golpista cumpriu muito bem o seu papel, dedicando um tratamento todo especial aos protestos. Desde o início da manhã do dia 15, os principais veículos de comunicação do país passaram a transmitir ao vivo os protestos em diversas cidades, com apresentadores inclusive convidando a população a se somar aos mesmos. A Globonews, TV por assinatura da Rede Globo, foi uma das principais protagonistas desse tipo de comportamento, exibindo a todo tempo manifestantes pedindo a intervenção dos militares, a volta da ditadura e a derrubada de Dilma. E foi uma festa de cartazes e faixas – em inglês, inclusive, onde se pedia de tudo, até mesmo a morte da presidenta, de petista, de comunista e da esquerda em geral. Uma dessas faixas, exibida ao vivo pela mesma Globonews, trazia uma suástica no canto superior esquerdo e os dizeres: “FFAA, libertem o Brasil ou o mundo sangrará”. Apesar dessas manifestações de ódio e pedidos reiterados de interrupção da democracia, os jornalistas que comentavam essas imagens insistiam em dizer que as manifestações eram “pacíficas” e, pasmem!, “democráticas”.
O deputado federal Renato Simões, do PT do Distrito Federal afirmou, em um texto publicado em sua página no Facebook, que, “quando se abre a caixa de Pandora da direita em manifestações de ódio como as de hoje, o resultado para a democracia é imprevisível”. “No território das ruas sempre ocupado desde então pela resistência democrática das esquerdas, trava-se hoje uma batalha presencial e pela cobertura facciosa da mídia privada cuja versão marcará a disputa política nos próximos meses de forte instabilidade política”, acrescentou.
Demonstrações explícitas de fascismo foram abertamente dadas não só por manifestantes isolados mas pela fala de “lideranças” dos atos desde dia 15, advertiu Renato Simões. “Aqui em Brasília o Fora Dilma se estendeu ao Congresso, aos políticos em geral, ao Supremo e à própria democracia. O atentado do fim da manhã à sede do PT Jundiaí e a estridente parcialidade da cobertura do ato da Paulista pela rede Globo, que superfatura abertamente a já forte presença na manifestação mostra que está plantado em São Paulo o epicentro do golpismo, e em comum apontam para a necessidade de forte unidade em defesa da democracia e das reformas estruturais da política e da mídia tão necessárias e urgentes”, completou o deputado.
Para o cientista político Antonio Lassance, “as manifestações do dia 15 são uma marcha golpista, antidemocrática, hipócrita, financiada empresarialmente, comandada pelos partidos que perderam as eleições e coalhada de gente irritada que quer apenas desabafar, mas não faz a menor ideia dos interesses que estão por trás do convite que receberam para protestar”. “Falar de impeachment não é golpismo, certo? Certíssimo. Mas falar de impeachment de uma presidente da República eleita sobre a qual não pesa, em qualquer inquérito, a mínima evidência de qualquer envolvimento com crimes de corrupção é golpismo sim, senhor. Golpismo da pior espécie”, completou Lassance.
É preciso que se lembre a todos aqueles que não eram nascidos na década de 1960 e para aqueles que já esqueceram o que aconteceu durante a ditadura, que as passeatas do 15 de março são tão inofensivas para as instituições quanto foram aquelas que serviram de mote para o golpe de 1964. Passeatas feitas por gente que quer o impeachment de Dilma, mas gastou seu tempo no Congresso, nesta última semana, defendendo Eduardo Cunha e Renan Calheiros contra a ação do Procurador-Geral da República no escândalo da Lava Jato.
Ontem, deu para perceber o tamanho do golpismo no Brasil. Vimos a sua face mais nefasta; os ovos da serpente foram chocados e as víboras já estão nas ruas. Ontem, a Caixa de Pandora foi aberta e ninguém sabe ainda o que sairá de seu interior, apenas que boa coisa não pode ser.
Mas Antonio Lassance, em seu artigo, deixa uma frase otimista, que servirá para a reflexão de cada brasileiro consciente do seu papel de protagonista da história e defensor da democracia: “o Dia 15 passará para a posteridade como o dia em que a oposição, cansada de perder eleições, teve uma vitória de Pirro, mas saiu derrotada ao assumir de vez seu espírito antidemocrático, golpista, hipócrita e irresponsável diante das instituições do país”. Lassance, eu acrescento à sua fala, o seguinte: tudo vai depender do que o Palácio do Planalto e a base de sustentação do governo farão a partir de hoje – porque nós, que defendemos o Brasil, já estamos na luta há tempos!

* Fabiana Agra é advogada e jornalista



sábado, 14 de março de 2015

QUE VENHAM OS GOLPISTAS



Confesso: eu esperava pouco dos atos programados para ontem, sexta-feira 13. Explico: como em qualquer democracia do mundo, logo que reassumiu a presidência, Dilma jogou seus pacotes impopulares mas necessários, para tentar conter a crise que já galopeia. Aí não tem jeito, estrebucha da madame que vai a Miami quatro vezes por ano ao vendedor de picolé na praia; reclama do que passeia a bordo de um Porsche, àquele que conserva seu Fusca desde os anos 70. Tendo por base essa simplória constatação, subestimei mais uma vez o povo brasileiro – e pude constatar, feliz da vida, que o povo brasileiro e a nossa democracia amadureceram!
A lógica é que amanhã, domingo 15, os golpistas coloquem muito mais gente nas ruas. É o que espera-se: domingo à tarde, nada para fazer e a mídia fazendo o chamamento. Porém, seja qual for o número de revoltontos nas ruas, a tentativa de golpe morreu antes de nascer, quando milhares de brasileiros tomaram as ruas em 23 estados e no Distrito Federal, durante manifestações pacíficas em defesa da democracia e do governo da presidenta Dilma Rousseff.
A grande adesão as manifestações dessa sexta é prova do forte apoio ao governo da presidenta Dilma e pelo que pude ver através da blogosfera – já que a mídia golpista boicotou os eventos –, foram passeatas entusiasmadas e participativas mesmo debaixo de chuva, como em São Paulo, que reuniu aproximadamente 100 mil pessoas na Avenida Paulista. Essa quantidade de gente na capital do conservadorismo e do golpe? Eu não esperava nem no meu melhor sonho! De tudo o que observamos, fica constatado que os movimentos sociais estão unidos para defender o Brasil. E, mesmo que a oposição se aproprie de uma “lógica de impeachment golpista”, os partidos progressistas e os movimentos sociais não irão permitir.
Na contramão do dever de informar, toda a velha mídia golpista composta pela Rede Globo e demais TVs abertas, as rádios CBN e BandNews, revistas Veja, Época e Istoé e os jornais Folha de S. Paulo, Estadão e Gazeta do Povo simplesmente deixaram de divulgar o ato de ontem pela democracia. Já o ato do dia 15, que  defende o Impeachment da presidenta ou a “intervenção militar”, está tendo ampla cobertura e convite por parte de uma imprensa cada vez mais desfocada e prestes a sucumbir diante do crescimento da blogosfera. Foi esta a impressão que tive, quando a hashtag #GloboGolpista foi o assunto mais comentado do Twitter no Brasil por mais de 24 horas, do dia 12 ao dia 13 de março. Um recorde absoluto. Os usuários da internet, a cada dia mais numerosos, pelo jeito irão enterrar de vez a velha mídia brasileira.
Mas vem chumbo grosso por aí: a direção de jornalismo da Globo, por exemplo, já convocou jornalistas para fazer cobertura ao vivo dos atos desde o domingo cedo e já teria informado que vai usar o Globo Notícia para criar um clima mais quente da cobertura. Os desmandos da “Vênus platinada” não param por aí: o movimento golpista “Vem Pra Rua”, um dos idealizadores do protesto, divulgou pelas redes sociais uma série de vídeos com atores da Rede Globo convocando a população a participar das manifestações. Dentre os "globais" que gravaram depoimentos estão os atores Marcio Garcia, Christine Fernandes, Malvino Salvador, Marcelo Serrado, Alessandra Maestrini e Kadu Moliterno, dentre outros. Outros famosos como o ex-jogador de futebol Ronaldo Fenômeno e a cantora Wanessa Camargo também confirmaram que irão participar das manifestações deste domingo.
o SBT, do empresário Silvio Santos, abriga hoje em seus quadros dois dos principais propagandistas da ruptura democrática no País: Raquel Sheherazade e Danilo Gentili. Enquanto ele divulga vídeos convocando o impeachment, ela usa seu Twitter para disseminar ódio e preconceito, em mensagens como “Vai pra Cuba, Dilma”. Porque assim é bem mais fácil juntar milhares de desavisados, não é mesmo?
Sim, os golpistas – falando em volta dos militares e outras loucuras – vão levar muita gente pra rua no dia 15. Mas a força deles será também a sua fraqueza. Como bem lembrou Rodrigo Vianna no site da Revista Fórum, “Já erraram a mão. Assustaram o povo moderado”. E Vianna continua, magistralmente: “Dilma começou o segundo mandato errando muito: desagradou seu eleitorado. Está sob ataque no Congresso, e na mídia. E aí aparecem os tucanos: ‘vamos sangrar a Dilma’. E seus eleitores finíssimos, os paneleiros: ‘vaca, puta, ladra!’. Olha só: até quem não gosta da Dilma, nunca gostou, está ressabiado com esse clima de ‘esfola e mata’. A direita vai reunificar a base do governo nas ruas”. O jornalista escreveu seu artigo às 00h37 do dia 12 de março – e acertou na mosca!
E eu, que passei os últimos dias praticamente sem dormir, travando o embate virtual, pelas redes sociais, em defesa da nossa democracia, irei dormir hoje mais tranqüila. Sim, serão milhares de golpistas e “marias-vão-com-as-outras” a desfilarem pelas ruas do país nesse domingo 15. Mas eles não passarão. A tentativa de golpe foi calada pela voz potente de milhares de sindicalistas, de professores, de sem-terra, da massa inquieta dos partidos de esquerda, dos estudantes, e de todos aqueles que querem a permanência da democracia.
Tem mais: por ironia da História, os golpistas e a mídia que os alimenta conseguiram fazer o que Lula e Dilma não conseguiram: unir as esquerdas do Brasil. E agora, não tem mais quem segure este povo, cujo grito de guerra ecoou pelos quatro cantos do país: “pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem não pode com formiga, não assanha o formigueiro”. Foi bem mesmo como disse Vianna: “Esses tucanos… São Lacerdas desajeitados”.
As manifestações de ontem foram apenas um ensaio geral, que desfilou o seu lema: não tentem ferir de morte a nossa democracia porque nós não iremos deixar. E deixaram um recado ainda mais claro: quem sair às ruas dia 15 vai ficar carimbado para toda a vida como um golpista – com apoio da velha mídia golpista, dos empresários milionários e do mercado internacional.

* Fabiana Agra é advogada e jornalista.


terça-feira, 10 de março de 2015

O OVO DA SERPENTE SENDO CHOCADO EM TERRAS PICUIENSES


Em fevereiro de 2015, a Câmara Municipal de Picuí aprovou um projeto de lei, de iniciativa do vereador Vidal, que versa sobre uma pretensa “Escola sem partido”. A lei seria mais uma que passaria despercebida (até ser “sacada” do escaninho para prejudicar algum profissional), não fosse a observação atenta e pontual de alguns professores picuienses que, através das redes sociais, começaram a denunciar a mordaça a que serão submetidos, caso a Câmara de Picuí não reveja sua posição ou o prefeito Acácio não vete a lei.

No momento em que o debate tomou corpo nas redes sociais, eu fui provocada a participar – foi então que comecei a pesquisar o que estava por trás da tal lei. E o que eu vi me deixou preocupada, deveras preocupada.

O movimento “Escola sem partido”, criado em 2004, é uma iniciativa do advogado Miguel Vacico Nagib, que coordena um site, onde apresenta um anteprojeto de lei para ser aprovado no Congresso Nacional e nas Assembleias Legislativas.  Justamente desse site foi retirado o projeto de lei picuiense – sem tirar nem por qualquer palavra, o projeto é tal e qual.

 “Escola sem partido” seria um dos milhões de sites anônimos e sem visibilidade, espelhados no mundo cibernético, não fosse o recrudescimento, em terras brasileiras, do conservadorismo anacrônico e do fundamentalismo religioso, representados na política pelas figuras de Feliciano, Bolsonaro e Cunha. O resultado é que a família Bolsonaro – defensora da ditadura militar – capitaneou a iniciativa, tendo inclusive Flávio Bolsonaro, deputado fluminense, apresentado o projeto de lei análogo ao picuiense na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, ainda no ano de 2014. No Rio, o projeto está para ser analisado. E pude observar também que já há iniciativas em alguns municípios brasileiros, por parte dos seus edis, no sentido de apresentarem a cria do advogado Nagib.

Ao analisar a lei, parei em seu segundo artigo, que reza o seguinte: “É vedada a prática de doutrinação política e ideológica em sala de aula, bem como a veiculação, em disciplina obrigatória, de conteúdos que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos estudantes ou de seus pais ou responsáveis”. Confesso que o texto causou-me náuseas, por querer inverter o papel da escola e dos professores em uma sociedade democrática.

Embora o texto do projeto não exemplifique, o movimento é uma blindagem contra possíveis intervenções de secretarias municipais, estaduais ou até mesmo do Ministério da Educação que possam sugerir a ideologia de gênero ou a ideologia política na grade curricular dos ensinos básico e médio. Ou até barrar iniciativas de educação sexual, vejam só.

Dessa forma a pluralidade da escola pública ficará comprometida em Picuí, uma vez que, em qualquer democracia do mundo, o cidadão deve ser livre para fazer e saber escolher; para tanto, ele precisa e tem assegurado o direito a conhecer outros fatos e outras histórias, sob os mais diversos ângulos. Em contrapartida, o Poder Público tem o dever de dar o conhecimento e a liberdade de escolha, pois sabe-se que “credo religioso”, “sexualidade” e “cor político-partidária”, são condições e identidades que o indivíduo constrói ao longo de sua vida e de sua vivência no meio social.

É preciso explicitar que aqueles pais – e parlamentares – que não concordem com a visão pluralista da educação pública e que queiram educar seus filhos em uma bolha segundo as suas próprias ideologias, que os mesmos devem procurar escolas particulares que compactuem com suas convicções, pois a Escola Pública deve ser inclusiva e aberta ao debate de idéias. Por óbvio que a Escola Pública não pode interferir na escolha da religião, estilo de vida e agremiações partidárias. Deve-se, sim, estimular o conhecimento das escolhas feitas, estimular as pesquisas e orientar sobre responsabilidade, direito e dever.

O debate no âmbito da escola pública precisa ser plural, não pode regredir ao reducionismo, já que esta tem como objetivo maior a formação para a democracia, além de instrumentalizar o aluno para a compreensão da realidade que o rodeia, bem como a formação para o  pleno exercício da cidadania. Estes são pontos determinantes em nosso tempo, e que devem ser preenchidos pela ideia de respeito à diversidade. Mas, apesar dos avanços na pauta dos direitos civis, ainda vivemos em um país onde a opressão às ditas “minorias” é ainda muito evidente. O racismo, a homofobia, a xenofobia e o preconceito de classe permeiam todas as relações sociais. 

Para ficar apenas em um exemplo, transcrevo notícia do site Extra – e que exemplo triste, mas pontual: “o adolescente Peterson Ricardo de Oliveira, de 14 anos, morreu, na tarde dessa segunda-feira. O garoto estava internado, em coma, no Hospital Regional de Ferraz de Vasconcelos, na Grande São Paulo, com hemorragia cerebral, desde o último dia 5. Segundo o pai do jovem, Márcio Nogueira, ele teria sido vítima de um espancamento dentro de uma escola pública na Vila Jamil, na manhã desta quinta-feira. Em entrevista ao portal R7, o pai disse que o garoto foi agredido por ser filho de um casal gay”. Percebem a gravidade do problema?

Portanto, é tarefa da escola fazer a crítica e dar a formação necessária ao alunado para romper este quadro de discriminação; tal objetivo só é alcançado tendo o professor a autonomia de ensinar. E, diga-se de passagem, ter autonomia não exime o profissional de ser responsabilizado, caso faça apologia a partido “A” ou “B”. Entendam isso, de uma vez por todas!

E para aqueles que ainda falam em neutralidade: não, não existe neutralidade absoluta em lugar algum, seja na mídia, seja na escola, seja na feira-livre – tudo e todos tem um lado. A diferença é que há os que são sectários, que vivem em um mundo particular que consideram o certo, o santo, o divino. São estes que querem calar os professores picuienses, profissionais que apenas mostram que não há apenas um ponto de vista e que a vida é plural. 

É, estão querendo calar os professores picuienses como quiseram calar Giordano Bruno e Galileu Galilei. No entanto é a terra que se move, vereadores, aprendam...

A educação deve ser emancipadora. A resistência, por parte de propostas como o movimento “Escola Sem Partido”, só demonstra que essa tarefa é ainda muito árdua. Vivemos tempos difíceis, muito difíceis.

À luta! Avante!
  
* Fabiana Agra é advogada e jornalista



segunda-feira, 9 de março de 2015

A Inconstitucionalidade da “Lei da Mordaça Fundamentalista Bolsonariana da República de Picuí”


     A Constituição Federal não impede os Municípios de legislarem sobre educação e ensino – desde que respeitadas as normas gerais da União e, eventualmente, dos Estados, logicamente havendo interesse local. Ademais, o artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, ao estabelecer em seus parágrafos a base nacional dos currículos do ensino fundamental e médio, revela a possibilidade de complementação desses currículos em cada sistema de ensino (Estadual e Municipal) e nos próprios estabelecimentos escolares.

     Não obstante ventilada tal possibilidade, temos que, entre os princípios constitucionais, um dos mais representativos é o da independência e harmonia dos Poderes, expressamente estabelecido no art. 2º da atual Carta Magna. Assim, ao organizarem-se, portanto, Estados-membros e Municípios, estão obrigados a reproduzir em suas constituições e leis orgânicas, o “princípio da separação dos Poderes”, bem como a efetivamente respeitá-lo no exercício de suas competências.

     Assim posto, e na concretização deste princípio, a Constituição Federal previu matérias cuja iniciativa legislativa reservou expressamente ao Chefe do Poder Executivo. Por este prisma, e trazendo tais conceitos à problemática criada com a aprovação da lei que amordaça os professores picuienses, a eventual ofensa ao princípio elencado, por parte do Poder Legislativo municipal, mancha o ato normativo de nulidade, por vício de inconstitucionalidade formal, em razão da indevida ingerência na esfera de competência exclusiva do Poder Executivo.

Dito isso, fica explícito que a “Lei da Mordaça Fundamentalista Bolsonariana da República de Picuí”, viola o princípio da separação dos Poderes, por meter-se o Poder Legislativo em matéria tipicamente administrativa, de competência exclusiva do Poder Executivo, nos termos do art. 82, VII, da Constituição Federal.

Explico: a malfada lei que foi votada e aprovada pela Câmara Municipal de Picuí, por ser de iniciativa legislativa, é inconstitucional, pois veta a “doutrinação política” por parte dos professores municipais (sic) ao passo que exige “neutralidade política nas escolas” – matéria esta tipicamente administrativa, sobre a qual compete privativamente ao Executivo Municipal dispor.

     A determinação legal, caso seja sancionada pelo prefeito – o que eu não acredito, acarretará manifesta interferência na administração do município, posto que é da competência exclusiva do Prefeito Municipal, além do que gerará despesas para os cofres da municipalidade, pois é inafastável que haverá necessidade de contratação de novos servidores para a nova "atividade curricular".

     Explico novamente: caso não seja vetada pelo Poder Executivo, para que a lei seja cumprida terá que ser criada uma “rede de arapongas”, de “dedos-duros”, que deverão posicionar-se em cada sala de aula do município, para observarem as falas dos nossos educadores. “– E pode, Fabiana? E onde fica a autonomia do professor?”, dirão vocês. Ou então, colocar uma câmera em cada sala de aula do município para que os professores sejam observados, no melhor estilo “invasão de privacidade”, por uma central – onde um censor analisará, quadro a quadro, se a tal lei está sendo cumprida. Percebem o absurdo dessa lei? Percebem? Se alguém ainda não conseguiu perceber, a gente desenha na próxima intervenção.

     Mas a malfada lei não é só inconstitucional por invadir a seara própria do Poder Executivo. Quem dera, fosse só por isso!

      A Constituição Federal em seu art. 206, assim dispõe:
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
(...)
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

     Por sua vez, a Constituição do Estado da Paraíba, ao dispor acerca da educação, repete, na íntegra, o inciso II do art. 206 da Carta Magna:
Art. 207. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania, sua qualificação para o trabalho, objetivando a construção de uma sociedade democrática, justa e igualitária, com base nos seguintes princípios:
(...)
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;


     Finalmente, o instrumento normativo que rege a educação brasileira – s Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996), assim dispõe, em seus artigos 1º e 3º:
Art. 1º. A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.
(...)
     Art. 3º. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;
III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas; (...)

     É fácil visualizar que todas as normas atinentes à educação, no Brasil, privilegiam a liberdade de aprender, de ensinar, de pesquisar e de divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber.

     Decerto por Picuí ser um município sem problemas, onde tudo funciona às mil maravilhas e que não sofre com os problemas próprios do semiárido nordestino, não sei se por descuido ou por cochilo – ou se por desconhecimento da matéria, os nobres vereadores picuienses perdem o tempo e utilizam mal seus subsídios, bancados por nós, ao aprovarem uma lei anacrônica, cujo teor, já superado historicamente, tem fortes marcas de conservadorismo e fundamentalismo religioso. A tal lei, que já batizei com o nome do seu criador carioca, prevê que se alterem os currículos escolares e que os mesmos não contenham os fatos políticos que movem a história da humanidade, o que, na proposta do filho de Bolsonaro, é classificado como “doutrinação política e ideológica”.

     Então tá, vereadores: então vocês querem e vão proibir que a História e as Ciências Sociais sejam ensinadas, nas escolas picuienses? Nas palavras de Janeslei Aparecida Albuquerque, professora da rede estadual do Paraná – que insurgiu-se contra uma lei semelhante – vocês estão legislando no sentido de que “o ensino de História seja ‘desistoricizado’. Bom, talvez vire um conto de fadas. Uma narrativa linear sem disputas de poder, sem vencidos nem vencedores, sem injustiças nem injustiçados, sem conflitos... sem ‘ideologia’”.

    Como eu já falei em artigo anterior, essa proposta, por si só, é carregada de ideologia. Os princípios que norteiam a Constituição Federal e a LDB dizem que “a educação das crianças e jovens deste país deve se constituir no aprendizado das ciências, no domínio da técnica e também na formação para o livre exercício da cidadania, da crítica, da consciência, e o direito a uma boa formação para o mundo do trabalho. O que exige o estudo da ciência, que, por sua vez, exige método e comprovação”.

   E de que “mundo do trabalho” se trata? “Trabalho que se dará numa sociedade dividida em classes, numa sociedade em que os direitos sociais, trabalhistas e civis há pouco tempo vem sendo construídos. Uma sociedade que se constituiu nas práticas do escravismo, do poder exercido pelas oligarquias, na violência, no patriarcado, no patrimonialismo”, seguindo o pensamento de Janeslei Albuquerque.

    Assim, com a sanção da lei picuiense, estes fatos não poderão mais ser objeto de reflexão por parte dos nossos educadores. A História Mundial e a História do Brasil passarão a ser contadas através de fatos isolados e que aconteceram “ao acaso” – ou por intervenção do divino, vai se saber o que virá depois...

    Essa lei, caso não seja de pronto vetada pelo Poder Executivo Municipal, ferirá a laicidade do Estado, na sua “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber”. E ferirá mortalmente o princípio da pluralidade de ideias e de concepções pedagógicas.

    A opção religiosa da parlamentar que apresentou o projeto é da esfera privada, é problema dele. Mas a educação é regida por princípios de caráter público, e muito mais ainda em se tratando da escola pública, que é de todos. Ademais, a superação dos Estados teocráticos e a instituição da laicidade do Estado é uma conquista da modernidade e deu-se nos séculos XVI e XVII. Essa lei, caso seja sancionada, levará Picuí a um atraso de mais de 200 anos!

    Agora, só resta esperar pelo veto ou pela sanção da lei. Agora só resta esperar por um Picuí de volta à Idade Média ou por um Picuí que seguirá em frente. Aguardemos.




sábado, 7 de março de 2015

Carta Aberta aos Educadores Picuienses


por Fabiana Agra*


     No mês em que Picuí completa 111 anos de emancipação, a sua Câmara de Vereadores vota e aprova uma lei que, no seu cerne, amordaça os professores do município. A ideia para tal lei vem de iniciativas como as da ONG “Escola Sem Partido”, e de um projeto de lei semelhante, apresentado no Rio por, nada mais nada menos, do que Flávio Bolsonaro – filho do outro Bolsonaro.

     A discussão é sobre um suposto processo de doutrinação protagonizado pelas escolas – em especial por docentes da área de humanas – cujo objetivo seria alimentar uma “ideologia comunista” entre estudantes do ensino fundamental e médio. A ONG em questão, tem por objetivo maior aglutinar denúncias e promover ações, com o pretexto de limpar a escola da “ideologização”.

     Aí eu pergunto: qual é a ideologia que existe por trás disso?

     É obvio que eu também não concordo que educadores ensinem aos seus alunos optarem por determinadas ideologias ou terem certas preferências partidárias. E não acredito que tal seja a prática dos educadores picuienses. Acontece que a proposta da lei ignora que todo posicionamento e conteúdo veiculados no discurso, seja de quem quer que seja, é carregado de “ideologia”, que nada mais é do que o “conjunto de ideias e conceitos que utilizamos para lidar com a realidade e uns com os outros”. Não há, portanto, conversa sem ideologia, bate-papo sem ideologia, ministrar aula sem ideologia.

     Até para conhecer os dois lados da moeda, fui dar um passeio no site da ONG “Escola sem Partido”: vi quem são os grupos apoiadores, seus fundadores; vi os links compartilhados pela página... Então, basta uma olhadela por lá para saber quais  ideologias o site defende. Algum tempo atrás, o mesmo site tentou emparedar Cleonilde Tibiriçá, professora da Faculdade de Tecnologia de São Paulo, por considerar que a mesma utilizaria material de “teor ideológico”. A defesa da professora é um libelo contra tudo o que se esconde por trás do movimento e deve ser lido pelos nossos educadores:

      “(...) Como professora contratada pela FATEC por meio de concurso público, igualmente me é assegurada a autonomia para, dentro de minha área de especialidade, definir o plano de ensino no formato em que julgar que deva sê-lo. Isso seria o bastante para apenas ignorar sua ameaça (e é disso que se trata, já que, salvo melhor juízo, não há qualquer embasamento científico que confira ‘foros’ de ‘parecer’ àquilo que, a despeito de ser livre exercício de manifestação de pensamento, é apenas tentativa de calar o que vai de encontro àquilo que o “partido” – seja lá qual for – da “escola sem partido” crê deva ser posto em debate); todavia, ameaças desse tipo, por mais inócuas que pareçam, não podem ser ignoradas. O sr., seus chefes e seus seguidores são adultos que devem assumir a responsabilidade pelas ações persecutórias que desencadeiam e suas consequências. E é o que acontecerá – o sr., seus chefes e seus seguidores responderão judicialmente caso tentem vincular meu nome à sua campanha de bullying ideológico (...)”

     O que se temos aqui é aquele velho e conhecido debate sobre ser ou não possível educar sem que haja uma concepção política por trás, discussão similar à possibilidade de haver imparcialidade nos meios de comunicação. Discussões essas que não levam a nada, a não ser desviar a nossa atenção para as reais demandas da sociedade. Ora, retirar da educação o seu caráter político é extrair todo o seu sentido. Tibiriçá, em sua brilhante defesa, lembra que:

     “O problema está em desafiar este ideário tradicionalista e afinar-se… com a Constituição! Sim, pois invocar a liberdade de crença, ou mesmo a LDB, para defender uma limitação seletiva e arbitrária no discurso de educadoras e educadores é, por assim dizer, um tiro no pé. E isso porque, compreendido que toda forma de educação envolve escolhas políticas e discursivas e, portanto, é ideológica, bem como que a eliminação de formas de discriminação e preconceito são diretrizes legais nacionais e internacionais que devem orientar o agir de todos os atores sociais, aí incluídos educadoras e educadores, percebe-se que, mais do que um direito, é um dever da escola combater todas as formas de opressão existentes e, fundamentalmente, questionar a própria estrutura social desigual na qual estamos inseridos”.

   Escolhas políticas são inerentes à educação, sendo ela própria uma iniciativa política: escolarizar a população. Aprender que o Brasil foi “descoberto”, que D. Pedro I é o “defensor perpétuo do Brasil”, que Duque de Caxias é herói nacional, são conteúdos totalmente politizados, no sentido de tentarem minimizar a nossa condição de país colonizado e dominado culturalmente ao longo dos séculos.

     Há política em tudo isso. Mas quando a patrulha da “escola sem ideologia” vem à tona, é para defender uma despolitização bastante parcial. Falar de “Descobrimento”, pode. Mencionar reforma agrária, não pode. Ensinar nomes de rios e capitais, pode. Discutir a questão racial, não pode. Passar os valores da “família”, pode. Debater casamento homoafetivo, não pode.

    O pior de tudo é que o cinismo desses grupos não esconde que o “sem partido” é partidário, sim, seus asseclas são seguidores de uma ideologia liberal conservadora, alheia à agenda dos direitos humanos, avessa aos movimentos sociais, incapaz de sustentar sequer a democracia que o Brasil conseguiu a duras penas.

     Adriano Senkevics, pesquisador do INEP, lembra, com propriedade: “não me assusta que este cerco armado contra qualquer formação crítica – repito, dentro dos marcos da nossa democracia – seja a maior opositora à incorporação das disciplinas de sociologia e filosofia nos currículos. É óbvio. O que são essas disciplinas senão um campo para o sujeito repensar seu papel na sociedade, repensando-a por inteiro? Dá no que dá: jovens saem da escola sem ter as mínimas noções do sistema político, da sociedade, do modo de produção econômico etc. Saem, portanto, despolitizados”.

     A lei que foi votada e aprovada em Picuí, na verdade, insinua que a educação em nosso município é uma doutrinação de esquerda – o que passa longe da verdade; se assim fosse não teríamos notícias que relatam violência, racismo, homofobia, classismo, machismo nas escolas de todo o Brasil. Assim, “não se trata de ‘despolitizar’ a escola, mas de definir coletivamente com a sociedade quais são os marcos políticos que vão nortear a educação, das políticas públicas aos currículos”. E isso, meus amigos, não é feito amordaçando os professores de lugar nenhum. Isso é feito através do debate!

     Eu arremato com as palavras de Senkevics:
  “O silêncio que se pretende impor é uma forma brutal de calar as desigualdades, injustiças e opressões que estão às vistas de toda a sociedade e que, elas mesmas, entram com força na própria escola: a violência, a discriminação, a marginalização, a repressão policial. Não sou eu que estou falando: essa é a realidade que uma boa parcela dos/as estudantes pobres da periferia vivem, os quais compõem significativamente a massa de crianças e jovens das escolas públicas”.

     Finalmente, professores e educadores de Picuí: é chegada a hora de reagir, pois caso vocês se deixem amordaçar agora, as novas gerações picuienses serão cérebros desprovidos de idéias e ideais – coisa bem comum nos tempos da ditadura...

Contem comigo.