A Constituição Federal
não impede os Municípios de legislarem sobre educação e ensino – desde que
respeitadas as normas gerais da União e, eventualmente, dos Estados,
logicamente havendo interesse local. Ademais, o artigo 26 da Lei de Diretrizes
e Bases da Educação, ao estabelecer em seus parágrafos a base nacional dos
currículos do ensino fundamental e médio, revela a possibilidade de
complementação desses currículos em cada sistema de ensino (Estadual e
Municipal) e nos próprios estabelecimentos escolares.
Não obstante ventilada
tal possibilidade, temos que, entre os princípios constitucionais, um dos mais
representativos é o da independência e harmonia dos Poderes, expressamente
estabelecido no art. 2º da atual Carta Magna. Assim, ao organizarem-se,
portanto, Estados-membros e Municípios, estão obrigados a reproduzir em suas constituições
e leis orgânicas, o “princípio da separação dos Poderes”, bem como a
efetivamente respeitá-lo no exercício de suas competências.
Assim posto, e na
concretização deste princípio, a Constituição Federal previu matérias cuja
iniciativa legislativa reservou expressamente ao Chefe do Poder Executivo. Por
este prisma, e trazendo tais conceitos à problemática criada com a aprovação da
lei que amordaça os professores picuienses, a eventual ofensa ao princípio
elencado, por parte do Poder Legislativo municipal, mancha o ato normativo de
nulidade, por vício de inconstitucionalidade formal, em razão da indevida
ingerência na esfera de competência exclusiva do Poder Executivo.
Dito isso, fica
explícito que a “Lei da Mordaça Fundamentalista Bolsonariana da República de
Picuí”, viola o princípio da separação dos Poderes, por meter-se o Poder
Legislativo em matéria tipicamente administrativa, de competência exclusiva do
Poder Executivo, nos termos do art. 82, VII, da Constituição Federal.
Explico:
a malfada lei que foi votada e aprovada pela Câmara Municipal de Picuí, por ser
de iniciativa legislativa, é inconstitucional, pois veta a “doutrinação
política” por parte dos professores municipais (sic) ao passo que exige “neutralidade
política nas escolas” – matéria esta tipicamente administrativa, sobre a qual
compete privativamente ao Executivo Municipal dispor.
A
determinação legal, caso seja sancionada pelo prefeito – o que eu não acredito,
acarretará manifesta interferência na administração do município, posto que é
da competência exclusiva do Prefeito Municipal, além do que gerará despesas
para os cofres da municipalidade, pois é inafastável que haverá necessidade de
contratação de novos servidores para a nova "atividade curricular".
Explico
novamente: caso não seja vetada pelo Poder Executivo, para que a lei seja
cumprida terá que ser criada uma “rede de arapongas”, de “dedos-duros”, que
deverão posicionar-se em cada sala de aula do município, para observarem as
falas dos nossos educadores. “– E pode, Fabiana? E onde fica a autonomia do
professor?”, dirão vocês. Ou então, colocar uma câmera em cada sala de aula do
município para que os professores sejam observados, no melhor estilo “invasão
de privacidade”, por uma central – onde um censor analisará, quadro a quadro,
se a tal lei está sendo cumprida. Percebem o absurdo dessa lei? Percebem? Se alguém
ainda não conseguiu perceber, a gente desenha na próxima intervenção.
Mas
a malfada lei não é só inconstitucional por invadir a seara própria do Poder Executivo.
Quem dera, fosse só por isso!
A
Constituição Federal em seu art. 206, assim dispõe:
Art. 206.
O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
(...)
II - liberdade
de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
Por
sua vez, a Constituição do Estado da Paraíba, ao dispor acerca da educação,
repete, na íntegra, o inciso II do art. 206 da Carta Magna:
Art.
207. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania, sua
qualificação para o trabalho, objetivando a construção de uma sociedade
democrática, justa e igualitária, com base nos seguintes princípios:
(...)
II
- liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte
e o saber;
Finalmente,
o instrumento normativo que rege a educação brasileira – s Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996), assim
dispõe, em seus artigos 1º e 3º:
Art.
1º. A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida
familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e
pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações
culturais.
(...)
Art.
3º. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I
- igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II
- liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento,
a arte e o saber;
III
- pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas; (...)
É
fácil visualizar que todas as normas atinentes à educação, no Brasil,
privilegiam a liberdade de aprender, de ensinar, de pesquisar
e de divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber.
Decerto por Picuí ser
um município sem problemas, onde tudo funciona às mil maravilhas e que não
sofre com os problemas próprios do semiárido nordestino, não sei se por
descuido ou por cochilo – ou se por desconhecimento da matéria, os nobres
vereadores picuienses perdem o tempo e utilizam mal seus subsídios, bancados por nós, ao aprovarem uma lei anacrônica,
cujo teor, já superado historicamente, tem fortes marcas de conservadorismo e
fundamentalismo religioso. A tal lei, que já batizei com o nome do seu criador
carioca, prevê que se alterem os currículos escolares e que os mesmos não
contenham os fatos políticos que movem a história da humanidade, o que, na
proposta do filho de Bolsonaro, é classificado como “doutrinação política e
ideológica”.
Então tá, vereadores: então vocês querem e vão proibir que
a História e as Ciências Sociais sejam ensinadas, nas escolas picuienses? Nas palavras
de Janeslei Aparecida Albuquerque, professora da
rede estadual do Paraná – que insurgiu-se contra uma lei
semelhante – vocês estão legislando no sentido de que “o ensino de História
seja ‘desistoricizado’. Bom, talvez vire um conto de fadas. Uma narrativa
linear sem disputas de poder, sem vencidos nem vencedores, sem injustiças nem
injustiçados, sem conflitos... sem ‘ideologia’”.
Como eu já falei em artigo anterior, essa proposta, por si
só, é carregada de ideologia. Os princípios que norteiam a Constituição Federal
e a LDB dizem que “a educação das crianças e jovens deste país deve se
constituir no aprendizado das ciências, no domínio da técnica e também na
formação para o livre exercício da cidadania, da crítica, da consciência, e o
direito a uma boa formação para o mundo do trabalho. O que exige o estudo da
ciência, que, por sua vez, exige método e comprovação”.
E de que “mundo do trabalho” se trata? “Trabalho que se
dará numa sociedade dividida em classes, numa sociedade em que os direitos
sociais, trabalhistas e civis há pouco tempo vem sendo construídos. Uma
sociedade que se constituiu nas práticas do escravismo, do poder exercido pelas
oligarquias, na violência, no patriarcado, no patrimonialismo”, seguindo o pensamento de Janeslei Albuquerque.
Assim, com a sanção da lei picuiense, estes fatos não poderão mais ser
objeto de reflexão por parte dos nossos educadores. A História Mundial e a História do Brasil passarão a ser
contadas através de fatos isolados e que aconteceram “ao acaso” – ou por
intervenção do divino, vai se saber o que virá depois...
Essa lei, caso não seja de pronto vetada pelo Poder
Executivo Municipal, ferirá a laicidade do Estado, na sua “liberdade de
aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o
saber”. E ferirá mortalmente o princípio
da pluralidade de ideias e de concepções pedagógicas.
A opção religiosa da parlamentar que apresentou o projeto
é da esfera privada, é problema dele. Mas a educação é regida por princípios de
caráter público, e muito mais ainda em se tratando da escola pública, que é de todos.
Ademais, a superação dos Estados teocráticos e a instituição da laicidade do Estado é
uma conquista da modernidade e deu-se nos séculos XVI e XVII. Essa lei, caso
seja sancionada, levará Picuí a um atraso de mais de 200 anos!
Agora, só resta esperar pelo veto ou pela sanção da lei. Agora
só resta esperar por um Picuí de volta à Idade Média ou por um Picuí que
seguirá em frente. Aguardemos.
Parabéns Fabiana, um belo artigo e uma valiosa contribuição histórica. Mais orgulhosa dessa prima!
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