O LINCHAMENTO NOSSO DE
CADA DIA
por Fabiana Agra*
A notícia
Ontem, logo que liguei o
computador, deparei-me com a notícia: um homem que teria cometido um assalto em
São Luís do Maranhão foi amarrado a um poste e espancado até a morte por um
grupo de pessoas. Outro suspeito de ter praticado o crime, um adolescente,
também linchado pela população, foi entregue à polícia, com
escoriações pelo corpo. E a matéria prossegue, lacônica: “De acordo com
a Polícia Civil, a vítima era Cleydison Pereira Silva, de 29 anos. Ele teve
suas roupas rasgadas e as mãos, pernas e tronco presos a um poste de
luz. Agredido com socos, chutes, pedradas e garrafadas, não resistiu e
perdeu a vida ainda no local, por conta de uma hemorragia. O pai
de Cleydison reconheceu o corpo do filho e disse não saber de seu
envolvimentos com crimes. A polícia investiga o caso, por meio
da Delegacia de Homicídios da capital maranhense, que tenta identificar os
autores do assassinato”.
Olho com desgosto para a imagem
daquele homem nu, amarrado a um poste. Morto. Linchado. Mas o pior de tudo é
saber que Cleydison é apenas mais um na estatística daqueles que são alvos de
“justiceiros” no Brasil: em 2014, pelo menos três episódios semelhantes
alcançaram repercussão nacional. Em janeiro, um adolescente negro, também
suspeito de ter cometido um assalto, foi amarrado por 14 homens em um poste no
Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, e linchado logo em seguida. E aqueles
justiceiros receberam aplausos e apoio por parte da jornalista Rachel
Sheherazade... No mês seguinte, em Teresina, um homem suspeito de roubo, após
ser espancado, foi jogando em um formigueiro, com mãos e braços amarrados – à
época, um jornal estrangeiro se referiu ao caso como “justiça à brasileira”. Em
maio, no Guarujá, litoral de São Paulo, Fabiane Maria de Jesus foi assassinada,
depois de linchada por diversas pessoas – o motivo do crime? Uma página popular
no Facebook, com notícias locais, divulgara um boato de que ela seria
responsável por sequestrar crianças para a “prática de magia negra”.
Após um copo d’água, fui zapear a
internet em busca de maiores informações. De pronto, vi a imagem mais
significativa sobre a notícia: em sua edição dessa quarta-feira, o jornal Extra, do Rio de Janeiro, trouxe uma capa histórica, onde fez
uma dura crítica à sociedade brasileira, denunciando que o linchamento, prática
crescente em nossa sociedade, é apoiada por grande parte da população,
inclusive por parte da imprensa. O jornal fez uma comparação entre a situação atual do Brasil
e a vivida no período da escravidão. “Se antes os escravos eram chamados à praça para
verem com os próprios olhos o corretivo que poupava apenas os ‘homens de sangue
azul, juízes, clero, oficiais e vereadores’, hoje avançamos para trás.
Cleidenilson da Silva, de 29 anos, negro, jovem e favelado como a imensa
maioria das vítimas de nossa violência, foi linchado após assaltar um bar em
São Luís, no Maranhão. Se em 1815 a multidão assistia, impotente, à barbárie,
em 2015 a maciça maioria aplaude a selvageria. Literalmente – como no subúrbio
de São Luís – ou pela internet. Dos 1.817 comentários no Facebook do EXTRA, 71%
apoiaram os feitores contemporâneos”, escreveu o jornal.
Depois de passar pelo site Carta Capital, fui para o blog de Leonardo Sakamoto, jornalista e
doutor em Ciência Política, que disse: "Desde que jornalistas fizeram
apologia ao fato de um jovem ter sido preso a um poste e espancado, como
punição por um suposto crime, no ano passado, no Rio de Janeiro, a moda parece
ter pegado. Pois, depois disso, outros casos pipocaram pelo país. Parabéns,
colegas. Parabéns a todos os envolvidos”.
Refletindo a notícia
Os livros jurídicos que tratam do tema
criminologia, trazem o conceito de “linchamento” como sendo um tipo de
autotutela ou autodefesa de terceiro em que os indivíduos, movidos pelo
sentimento coletivo de injustiça e insegurança, fazem “justiça com as próprias
mãos” ao espancar ou até matar um indivíduo que tenha cometido algum crime por
eles repugnável. Trocando em miúdos, trata-se de um crime para combater outro
crime, o qual não fora efetivamente combatido pela força policial estatal. Os
indivíduos responsáveis pelos linchamentos comungam do mesmo sentimento:
ausência de segurança pública.
Não obstante, no momento em que parte da população passa a tomar tal
medida, esgarça e chega mesmo a rasgar o “tecido social” já tão combalido da
sociedade brasileira; quebra o contrato através do qual nós, enquanto
sociedade, abrimos mão de resolver as coisas por conta própria para
continuarmos a sobreviver enquanto civilização. Sim, alguns de vocês vão
rebater a minha fala, dizendo que a população está cansada de esperar soluções
para a segurança pública em nosso país, e que a violência está desenfreada.
Concordo. Mas é preciso que respeitemos o poder do Estado na função de punir;
longe de defender “bandidos” ou que eles fiquem “impunes” – o que defendo é o
respeito ao sistema criado pela sociedade para punir quem infringe as normas.
Do contrário, voltaremos ao pó da barbárie e será o fim da sociedade como a
conhecemos.
Mas há um agravante nesses casos de linchamento “à brasileira”: o papel
de parte da nossa mídia. Se já não bastasse a escalada da violência em nosso
país, essa mídia de péssima qualidade prega um fascismo cada vez mais
desmascarado e despudorado, onde o “olho por olho, dente por dente” passa a ser
banalizado e até mesmo encorajado. É essa mesma mídia que também pratica seus
linchamentos diários, através da desconstrução criminosa de figuras políticas
que são desafetos dos donos de jornais e TVs. É o discurso do ódio ganhando a
pauta de jornais, de revistas e de noticiários televisivos com uma força
tamanha que sobra apenas duas opções ao cidadão: engolir esse ódio e interagir
com ele ou dizer “não” a essa imprensa, não abrindo a página do jornal e da
revista e trocando o canal da TV.
Sim, eu sei que os linchamentos existiam antes de Sheherazade, por óbvio;
mas agora essa prática infame ganha força através do discurso de ódio propagado
diariamente pela TV. E já está passando da hora de reagir; é preciso defender
as nossas instituições democráticas e a própria sociedade de tais anomalias, do
contrário, como bem disse Sakamoto, “a sociedade vai indo da barbárie para a
decadência sem passar pela civilização”.
A tempo: a maioria dos comentários que li acerca da capa do Jornal Extra trazem um total desconhecimento de
interpretação de texto e da história recente do Brasil. Algo a preocupar...
* Fabiana Agra é advogada e jornalista.
Com Carta Capital e Blog do Sakamoto
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